As perspectivas para a educação pública básica brasileira são aterrorizantes. Não bastasse a troca de ministros por causa de denúncias de corrupção – Milton Ribeiro deixou a pasta e foi substituído por Victor Godoy – o que se vê é uma total paralisia e um completo vazio de ideias do governo federal. Diante da crise profunda no sistema de ensino, a única solução que Jair Bolsonaro oferece para o setor é a educação domiciliar, o chamado homeschooling, quase uma excentricidade. O projeto que regulamenta esse tipo de prática acaba de ser aprovado na Câmara, demonstrando completa inversão de prioridades e uma aposta generalizante numa modalidade de ensino específica e inexpressiva. Já se sabe que durante a pandemia, nos tempos que passaram em casa, estudantes de todo o Brasil pioraram seu desempenho em matemática e língua portuguesa, por exemplo. A iniciativa do governo só serve para encobrir ainda mais sua incompetência para resolver problemas imediatos do sistema público e mostra que, na verdade, há um esforço ideológico para enfraquecê-lo. O objetivo é esvaziar o papel da escola e transferir para a família e também para as igrejas a responsabilidade pela educação de crianças e adolescentes.

ARMADILHA Afastado por suspeita de corrupção, o ex-ministro Milton Ribeiro (abaixo) deixou o MEC devastado e sem soluções; para o senador Marcelo Castro projeto que regulamenta o homeschooling aprovado na Câmara terá sérias dificuldades no Senado e representa um retrocesso em termos educacionais (Crédito:Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

“É inacreditável que, depois de dois anos de pandemia, quando as crianças foram obrigadas a ficar em casa, o governo transforme o homeschooling no assunto do momento”, diz Olavo Nogueira Filho, diretor executivo da ONG Todos pela Educação. “Nesse altura, o foco deveria ser o fortalecimento do sistema de ensino e das escolas”. O governo conseguiu impor um debate inútil e aprovar o projeto na Câmara por 264 votos a favor e 144 contra, uma maioria folgada. Mas o trâmite facilitado entre os deputados não deve se repetir entre os senadores. O presidente da casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), adiantou que o projeto será analisado com cuidado e não será votado em regime de urgência, como aconteceu na Câmara. “Essa matéria não tem prioridade nenhuma, é desperdício, perda de tempo e de foco”, diz o senador Marcelo Castro (MDB-PI), presidente da Comissão de Educação do Senado. “Além disso, representa um retrocesso em termos educacionais: o ambiente escolar é de convivência social e de amadurecimento dos jovens, é o lugar onde eles aprendem a praticar a democracia.” Para o senador há um evidente objetivo ideológico do governo de afastar as crianças de um lugar de pluralismo, onde o pensamento circula, as diferenças se expressam e se desenvolve o espírito crítico.

Pedro Ladeira

Há condições de absoluto isolamento, casos de famílias embarcadas, ou situações culturais que podem justificar a prática do homeschooling, mas tratá-lo como política pública de educação é uma aberração. Cerca de 15 mil famílias, segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), o praticam no Brasil, algumas por pura necessidade e outras por opção. Para os defensores da modalidade, sua adoção é uma questão de liberdade de escolha. Para os críticos, o homeschooling aumenta os riscos de deficiência na aprendizagem e na sociabilidade, além de dificultar as denúncias de casos de violência doméstica. A experiência nos Estados Unidos, onde a modalidade de ensino é mais frequente, comprova isso. Mostra também que os jovens que a praticam raramente entram em boas universidades. “Autorizar a educação domiciliar é um retrocesso sem precedentes”, diz o senador Marcelo Castro. O que se espera no Senado, é que o projeto sofra mudanças profundas e não generalize uma prática que deve ser excepcional. Cresce, de qualquer forma, o entendimento de que essa regulamentação representa um risco à garantia do direito fundamental à educação.O homeschooling é uma obsessão de Bolsonaro, que se espelha no modelo dos grupos sectários dos Estados Unidos. Desde 2019 a regulamentação da prática vem sendo alardeada como a única pauta prioritária do governo federal na área da educação. A ideia subjacente ao projeto é que o espaço privado, da religião e da família, pode substituir a educação pública. O governo trabalha para deixar as crianças isoladas em casas apreendendo com os pais e, segundo Nogueira Filho, cria a indefinida figura do “preceptor”, que pode ser qualquer um, além do pai e da mãe, desde que tenha curso superior completo ou nível de educação profissional e tecnológica. Pode ser o pastor da igreja das proximidades ou um amigo bolsonarista da família. Se a tal figura do preceptor for aprovada no Senado, poderá haver, entre outros efeitos, uma proliferação de escolas informais. O substituto dos pais, daqui a pouco, vai ter alunos em várias famílias e criará sua própria rede de ensino, que pode ganhar abrigo em uma igreja, por exemplo.