O economista Eduardo Giannetti concedeu esta entrevista por ocasião do lançamento da coletânea “O Elogio do Vira-Lata e outros ensaios”, lançado pela Companhia das Letras. A obra oferece a síntese do pensamento de um dos intelectuais de maior proeminência no Brasil, capaz de analisar peças musicais, tratados de filósofos como Adam Smith e David Hume e pensadores do Brasil como Gilberto Freyre. Uma das tarefas que esse ex-professor da USP doutorado em Cambridge com uma tese sobre o Iluminismo Escocês de Hume e Adam Smith é elaborar uma nova interpretação do Brasil e do caráter do brasileiro. Ele inverte a afirmação do jornalista Nelson Rodrigues, que, em crônicas sobre as copas do mundo de futebol de 1950, 1958 e 1954,  denominou  o sentimento de inferioridade do brasileiro diante dos estrangeiros como “complexo de vira-latas”. Giannetti retoma o termo pejorativo para convertê-lo no valor cultural que molda o brasileiro e pode fazê-lo avançar como referência na cultura mundial. (Leia também: “Ou nós brasileiros nos unimos ou naufragamos”)

Da mesma forma que o poeta Paul Valéry afirma que a barbárie nazista surgiu de uma sociedade superorganizada, você parece acreditar que um novo modelo de vida ideal nasceria da desordem à brasileiro. É a vantagem do “vira-latismo”?

Não é porque eles são educados que podem produzir barbárie – a educação é que não é suficiente. O “vira-latismo” brasileiro poderia gerar uma civilização original, que nos reflita e que ofereceria uma alternativa ao modelo anglo-americano dominante no planeta. Cada cultura é portadora de valores e de uma visão da melhor vida. O que não podemos no Brasil é vivermos a ideia de que somos um fracasso e uma cópia desastrada de um modelo e de um padrão que nunca alcançamos. A maturidade de uma cultura é a tranquilidade de ser o que se é – de não se submeter a métricas de sucesso que não são as nossas. O mundo asiático e europeu parece estar rendido a uma visão da melhor vida que é a do padrão ocidental da vertente americana. Isso ocasiona um empobrecimento e um estreitamento do horizonte imaginativo do planeta.

Os vira-latas têm algumas vantagens sobre os cães de raça: são resistentes a doenças, se adaptam facilmente e dão mais diversidade à espécie. O mesmo vale para os humanos?

O conceito do vira-lata me importa mais no plano cultural do que no biológico. Mas também no plano biológico a experiência mostra que a mistura é benéfica. Etnias que ficam muito isoladas e com muita endogamia têm problema. Aliás, a reprodução sexuada traz esse extraordinário benefício que é a mistura. As bactérias se reproduzem sem sexo; elas se dividem. A grande vantagem evolutiva do sexo é a mistura. O vira-lata é o campeão da mistura.

Qual a vantagem de ser um ser humano vira-lata – o brasileiro, como você o chama?

Encontrei um samba, “Cachorro Vira-lata”, autoria de Alberto Ribeiro, gravado pela Carmen Miranda. “No amor sem coleira, no trabalho sem patrão”. Ela celebra o vira-lata. E fala da disponibilidade de ir atrás do batalhão quando tocam a corneta. É o jeito brasileiro, celebrar o momento, o dom da vida como celebração imotivada. Este é o valor central do vira-lata: o dom da vida como celebração imotivada. Não precisamos de grandes pretextos e racionalizações de celebrar a vida. Você dá ao brasileiro qualquer oportunidade, ele faz com naturalidade o congraçamento, a celebração, que é contrária da ótica competitiva e calculista autointeressada que é o valor central da cultura ocidental anglo-americana.

O padrão anglo-americano de eficiência e trabalho  não funciona?

Vamos examinar o caso. Um trabalhador com uma renda mediana nos Estados Unidos ganha US$ 28 mil por ano. Ele está entre os 5% mais ricos do planeta. Mas seus próprios olhos e aos da sociedade em que ele vive, é considerado um derrotado. Como alguém que está entre os 5% dos mais ricos olha para si mesmo como um fracassado? E ele é um fracassado na sociedade onde ele vive, ele provavelmente vota no Trump e é um ressentido.

Por quê?

Primeiro, porque ele faz parte de uma cultura que se mede pela ótica do mercado. Segundo, porque ele se compara com seu grupo de referência e não é um vitorioso. Tem alguma coisa errada e mesmo doente em uma sociedade em que as pessoas se medem pela sua conta bancária e pela capacidade de vencer na arena competitiva do mercado, como se isso fosse o grande mérito humano e a conquista maior de uma vida bem vivida.

É a essa situação que você denomina criticamente de tecnoconsumismo?

Eu sigo Adam Smith, porque ele é um crítico feroz da deformação da consciência moral que significa avaliar alguém com base na posse de bens externos.

O consumismo se exacerbou no século 21?

O consumismo está se exacerbando dentro da americanização da imaginação proletária. Adam Smith dizia: a opinião favorável de uma pessoa educada vale mais que o aplauso entusiástico de 10 mil ignorantes Só que hoje, no mercado, o que conta é o aplauso entusiástico de 10 mil ignorantes. É a cultura do que vende.

Você se diz um utopista, um profeta analítico. Mas você crê que existe uma regressão da sensibilidade dos homens e o tecnoconsumismo pode rebaixar nosso espírito?

Sim, nesse sentido cito recorrentemente o ensaio “As possibilidades econômicas dos nossos netos”, do grande economista britânico John Mainard Keynes. Ele imagina que o mundo dos seus netos, que estariam alcançando a maturidade nos anos 1960 e 1970, seria feito de pessoas que não dariam à dimensão econômica da vida qualquer tipo de preeminência. O problema estaria resolvido e poderíamos nos libertar da escravidão econômica para viver a plenitude da existência, nas relações pessoais, na criação artística e na busca pelo conhecimento, na espiritualidade. O que aconteceu foi exatamente o contrário do que o Keynes sonhava. Quanto mais o Ocidente prosperou, mais enredado e obcecado ele ficou em torno do mundo financeiro e econômico. As pessoas hoje acompanham bolsas de valores em quatro continentes e não conhecem seus vizinhos de bairro…

A não ser pelas redes sociais…

A não ser pela hiperconectividade que o cineasta Werner Herzog resumiu: “A solidão humana aumentará na proporção exata do progresso dos meios de comunicação”.

Em seu livro “Felicidade”, a narrativa foi montada de modo a não defender um só ponto de vista, certo?

Sim, eu me inspirei no texto “Diálogos sobre a Religião natural”, de David Hume, em que ele propõe um diálogo equilibrado em que não há um vencedor, no qual cada ponto de vista tem a sua legitimidade. Ele escrevia para os amigos que tinham pontos de vista diferentes, pedindo que eles os melhores argumentos para sustentá-los.

Há uma falta de empatia da parte dos brasileiros em tentar entender o outro pode ser uma das causas da crescente polarização na política no Brasil e no mundo?

Há muita coisa em jogo: as novas tecnologias, a ascensão da política identitária, as circunstâncias políticas de cada sociedade e o desapontamento generalizado pelas formas de vida que nos governam. O modo como estamos lidando com o meio-ambiente, com a busca da felicidade que nos é oferecida e que está sempre nos escapando. Você quer evidência mais contundente de que há algo errado no mundo do que a frequência com que transtornos mentais andam acontecendo nos países de mais alta renda? A demanda por remédios e por substâncias que alteram  estados de consciência é uma coisa explosiva no mundo. Os americanos estão numa crise de dependência de opioides provoca a morte de uma média de 40 mil americanos por ano.

Qual é a importância do mal entendido em uma civilização dominada pela disseminação de fake news?

O mal entendido é a força mais poderosa da história das ideias. Nenhum autor controla e a interpretação e o uso que é feito de suas ideias. Se as ideias fossem absolutamente claras, não precisariam ser interpretadas. Não haveria a própria história das ideias como disciplina. Se existe uma indústria poderosa de interpretação em torno em torno de cada um dos grandes pensadores é porque há muita controvérsia e dúvida em relação ao que essas ideias querem dizer e como elas se prestam a diferentes utilizações. Cada um desses autores tem uma indústria montada em torno deles: Marx, Freud, John Stuart Mill, Adam Smith. Há trabalhadores que estudam aspectos particulares do pensamento e que ganham a vida com isso. Eu próprio ia me tornar um deles se continuasse na Inglaterra. Eu estava encaminhado para ser um intérprete.

Por que você desistiu e resolveu voltar para o Brasil?

Eu precisava me divertir um pouco na confusão. Mas também era castrador ficar lá, esmiuçando textos e cartas de um autor do século 18. De dois autores, aliás: David Hume e Adam Smith, os dois expoentes do chamado iluminismo escocês.  São muito afinados e tinham uma amizade intelectual.

Em que universidade você estava?

Cambridge. Se eu postulasse para ficar lá, e acho que teria alguma chance, eu ia virar um scholar especializado no iluminismo escocês. Era meu destino se eu resolvesse emigrar do Brasil.

Mas sua vida intelectual continua, inclusive escrevendo textos sobre Adam Smith e Hume…

Mas eu não posso pretender ter um grau de especialização e conhecimento detalhado que as pessoas que dedicam a vida isso. É uma imposição no mundo acadêmico hoje a especialização radical. Você encontrar um nicho, espaço e se viabilizar na academia, você obrigatoriamente deve fechar muito o foco – o que tem ganhos e perdas, como tudo na vida.

Mas no Brasil isso ainda não é necessário.

Eu tenho uma anedota real que me aconteceu na Inglaterra. Depois que me tornei “fellow” na universidade de Cambridge, eu passei a frequentar uma instituição que se chama “high table”, onde s reúnem jantam os fellows das mais diferentes áreas de pesquisa. Um dia você conhece um especialista em Dante, no outro um sujeito que hoje é meu amigo, especialista em chinês medieval – tanto que até os chineses que encontram um manuscrito vão falar com ele para decifrá-lo, um físico teórico, um matemático. Então você interage com a elite acadêmica mundial. Eu era um jovem latino-americano, até exótico para ambiente. Quando me perguntavam o que eu fazia, eu dizia que trabalhava na área de história do pensamento econômico. Mas isso é um pouco amplo, são três séculos, o que você faz exatamente? Eu respondia que eu desenvolvia meu doutorado sobre o iluminismo escocês. O sujeito ficava satisfeito. Eu volto, me torno professor de história do pensamento econômico na FEA-USP. Estou na minha salinha na faculdade, vem alguém de fora me visitar e pergunta: O que você faz? Eu digo que estudo história do pensamento econômico. O cara olha para mim: você só faz isso? Não faz mais nada.  Ele dá a entender que você é um vagabundo. Isso mostra um pouco a diferença dos ambientes. Em um, estudar história do pensamento econômico é de um generalismo inaceitável. No outro, é um especialismo suspeito. Tudo depende do grau de divisão do trabalho que a gente alcança. O Brasil continua muito generalista.

Por que você defende o ensino pago no ensino superior brasileiro?

Vamos com calma. A regra de ouro para não ser mal interpretado: quem não pode pagar vai estudar de graça. Ninguém vai deixar de cursar ensino superior por falta de recursos. Aí tem que ter bolsa, um mecanismo de financiamento. Eu não entendo por que quem pagou escola fundamental no ensino fundamental e médio, e no cursinho, para de pagar quando chega à etapa mais cara da educação. Eu acho que quem pode pagar deveria continuar pagando e que a receita teria de ser usada para melhorar o ensino fundamental de quem vem de famílias de baixa renda. Porque a sociedade brasileira está dando um enorme subsídio à educação dos ricos.

Então você é a favor de que a USP seja paga?

Eu já disse. Quem não tem renda para pagar necessariamente obtém o subsídio público. Isso é perfeito. Quem pagou no fundamental, no médio e fez cursinho particular, continua pagando. É um escândalo o governo gastar 6% do PIB em educação. É maior do que a média na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e do que na dos nosso pares regionais. O gasto em educação do governo é altíssimo. Mas quando nossos alunos vão participar do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos),  que é o teste comparativo internacional para os jovens de 15 anos, ficam nas últimas colocações entre 65 países. Como é que o país que gasta tanto em educação tem um resultado tão desastrosa? Parte da resposta é que gastamos desproporcionalmente dinheiro público com ensino superior para os ricos. Isso não é justo.

Assim a USP pratica a injustiça, mesmo com todos os movimentos dos alunos para a democratização do ensino?

A USP, as federais, as estaduais, todo o nosso enorme sistema. Pelo menos 30% do orçamento do governo federal é ensino superior.

Você pretende ainda escrever sobre Adam Smith e David Hume?

Eles são parte da minha formação, mas já e muito tarde para virar um scholar especializado neles.

O pensamento de Adam Smith é fascinante pela variedade, não?

Sim, ele escreveu sobre tudo, uma história da astronomia, sobre a teoria dos sentimentos e até sobre música. O primeiro curso que ele deu quando voltou de Oxford, onde passou seis anos, o primeiro curso que ele deu foi sobre retórica e literatura. Ele não escreveu o curso, mas os alunos que assistiram ao curso fizeram anotações minuciosas das aulas. Tanto que existem duas versões do curso. Ele fez a maior descoberta da economia na história do pensamento econômico: o modus operandi da economia de mercado, como ela produz uma ordem espontânea dotada de propriedades surpreendentes, de eficiência produtiva e alocativa. Para usar o jargão contemporâneo, ele descobriu que o mercado é um sistema de homeostase regido por feedback negativo.

Não deixa de ser um pouco a descrição do funcionamento da economia digital, em especial das redes sociais.

A melhor analogia é com a  gramática que ele próprio faz. Ele fez um estudo sobre a origem da linguagem. Ele descobriu que o mercado é uma espécie de gramática da convivência em sociedades baseadas na divisão do trabalho. Assim como a gramática estrutura as trocas verbais e nos a usamos sem perceber, e ela não foi resultado da intenção, mas da ação, uma coisa que foi se constituindo gradualmente, num processo de ajustamento. Smith nunca pretendeu inventar o mercado. O mercado foi algo que a humanidade foi descobrindo por ela mesma à medida que avança a divisão do trabalho, o que ele simplesmente explicitou as regras que regem essa interação regida por um sistema de preços.

Suas ideias são influenciadas por Gilberto Freyre, não?

Acho que ele capta algo de essencial do Brasil, embora às frequentemente exagerando na idealização do mundo patriarcal. Ele faz um trabalho notável de compreensão do que faz do Brasil Brasil. Muitas vezes na história de uma nação, você reavalia o passado. Estudei no Brasil nos anos 70, nas ciência sociais na USP, em que Gilberto Freyre, era banido.

Eram as teorias das teses de Florestan Fernandes e Caio Prado Jr. Hoje vivemos o retorno de algumas ideias de Freyre e do Sérgio Buarque de Hollanda.

Gilberto e Sérgio foram os grandes intérpretes da cultura brasileira. Nenhum deles dá conta do que somos, mas são contribuições que têm que ser incorporadas e metabolizados. Rejeitar isso é de uma burrice sem tamanho.

Você pensa em avançar de oferecer uma interpretação do Brasil?

É algo a ser construído em uma vida, e tento fazer isso no limite das minhas forças. Tento fazer as coisas aristotelicamente, no sentido de propor um diálogo. Vamos ouvir todos e ver no que podemos combinar e consolidar que esteja altura do desafio de nos entendermos. Aristóteles dá a receita de como proceder: ouvir todos e tentar o que justifica as diferentes perspectivas. Por exemplo, eu quero conciliar minha formação de economista com a visão profética dos modernistas, dos tropicalistas. Eu posso contribuir acrescentando essa dimensão que falta aos poetas.

Chamaram você de utopista tropical. Você concorda?

É como se a palavra utopista fosse pejorativa. Ou seja, o poeta e o economista têm que conversar. É daí que surge uma cultura. Não adianta um adepto da emoção e outro da razão. Essas coisas têm que se juntar. Eu inventei o termo “trópicos utópicos” em 1994. Usei a expressão e falei a Caetano Veloso. Parece Caetano.

Essa expressão trópicos utópicos resume sua aventura intelectual.

Uso no livro também a figura do profeta analítico. O Oswald de Andrade vai para o rapsódico, desconectado com o princípio de realidade. Falta a ele uma formação mais consistente em economia e filosofia. Para construir a visão generosa do Brasil, é preciso incorporar a visão poética, profética, mas também um elemento de análise crítica, com fundamentação rigorosa. É a crítica que eu faço ao livro “Verdade Tropical”, de Caetano Veloso. No que diz respeito ao projeto brasileiro, ele deixa a desejar.

Você afirma que o Brasil mereceria viver à altura de sua música popular. Isso significa que o Brasil deveria voltar ao tempos da bossa nova, ou seja, aos tempos de Juscelino Kubitschek?

O Brasil tem que viver à altura da música popular e não voltar no tempo. A música brasileira de qualidade está em várias épocas: Pixinguinha, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Caetano Veloso, Naná Vasconcelos (eu tomei um porre inesquecível com ele).

O Brasil merece viver o atual pior momento da música popular em comparação à boa fase do futebol?

Na vida pública hoje, estamos vivendo o pior da música popular atual. Mas a música popular constitui um caminho evolutivo e conectado. O futebol brasileiro que também é democraticamente aberto ao talento é um caso esplendoroso que o mundo reconhece. Aí eu lembro de um achado do Pelé, em uma declaração ao filme do João Moreira Salles. De onde vem o controle de bola do futebol brasileiro? Pelé diz: aqui no Brasil, a criança começa a jogar em rua de terra esburacado, de pés descalços e bola de meia. Se você não tiver um controle imenso, afinado, não tem jogo. É a nossa dificuldade que nos obriga a desenvolver um potencial diferente de controle. O jogador europeu nasce no campinho de grama, chuteira, meia, ele nãos desenvolve. O brasileiro consegue transformar o que parecia uma dificuldade, de uma desvantagem, uma conquista que nos faz diferentes. Essa coisa inominável que foi a escravidão, se nós tivermos sabedoria, saberemos transformar isso, que aconteceu pelo caminho mais cruel possível, na nossa grande diferença, que é a miscigenação, que é bela e um valor extraordinário. A originalidade do brasileiro é ser vira-lata. É o que canta  o Caetano, “Circuladô, com versos de Haroldo de Campos: “Pelo torno fiz direito”. É o que escreve Fernando Pessoa: “Extraviamo-nos a tal ponto, que devemos estar no bom caminho”.