13/09/2020 - 7:00
A poesia de Edimilson de Almeida Pereira é uma grade: em vez de – por entre as barras de palavras – promover revelações, ela nos prende. Leio Poesia + (Antologia 1985-2019), que acaba de sair pela Editora 34. Leio e me enredo em seus versos. Em Edimilson, recusando-se a fixar e a definir, a poesia é um objeto em andamento. Talvez apenas um rascunho. “A pedra o sabiá a palmeira escritos a giz são uma linguagem em preparação”, ele escreve. “O escrito é a indagação do alvo, impossível batizar as iras do texto”. Assim define, então, o destino do poeta: “Por ofício seremos anúncio de linguagem”.
Avessa aos estereótipos e aos verbetes – onde nunca pode estar -, a poesia é algo anterior ao nome. Edimilson a vê ainda como um motim, como rebelião e insurreição contra a rigidez da língua. Talvez esteja mais próxima do gaguejo, do suspiro, do balbucio. Está sempre em estado de ensaio. O poeta, com seu olhar em transe, se assemelha a um passista. Uma ginga, uma dança, um movimento nunca concluídos – pois, caso se conclua, poesia já não é. “O tempo sobre os estandartes./ Restam o fogo e o brilho/ sempre um risco”. A poesia é um esboço, e por isso envolve o perigo. Não há poeta plácido, há poeta que disfarça, mas que por dentro treme.
Sabe Edimilson – sabem os poetas – que a palavra, em vez de revelar, esconde. Diante de um poema, antes de perguntar o que ele diz, devemos nos interrogar a respeito do que ele oculta. Escreve: “a letra inscrita/ é outra chave de outro/ enigma”. O poeta trabalha não só com materiais perecíveis, mas também com elementos em grande parte inúteis. Ao puxar a palavra, o lixo vem junto, mas em vez de descartá-lo, o poeta o incorpora. É o que acontece, por exemplo, com a memória – matéria nobre da escrita poética. “A memória é/ um curso em parte/ navegável”. Em outra parte, ela é só um atravanco. Por isso, quando puxa pela memória, o poeta arrasta também a mentira. Muitos esquecem disso, mas a poesia é uma ficção.
Do poeta, em seus versos, ficam pegadas, só vestígios, sobras, que compõem um material a decifrar. Tanto o poeta, quanto a poesia, desprezam as respostas. Refutam a nitidez e a certeza. Escrevendo sobre um poeta suicida, Edimilson diz: “O poema da mão escassa/ calculou-o como obra, sabendo que a mão/ se demora nas cordas”. Consumada a morte, os poemas restam como pistas. Como uma trilha, que o leitor deve percorrer, mesmo sabendo que não chegará a destino algum. “Morto/ o poeta, seus livros perdidos são mapas”. Mapas que não levam a lugar algum, mapas que apenas nos fazem andar. Aqui podemos ver a poesia como um motor, algo que nos move – e comove.
Não deve o leitor supor, porém, que chegará a um ponto fixo, a um porto, a um fecho. Alerta Edimilson, para que seus leitores não se iludam ou, depois, não se decepcionem: “Aceito o nome procurado,/ mas advirto: a palavra filtra incertamente/ o que é núcleo/ sob o céu”. Ao miolo não se chega. Há um núcleo duro que, mesmo depois da escavação, persiste. Passou-se pela crosta, atravessou-se o manto, mas a partir daí a palavra (João Cabral já sabia disso) se torna pedra. No fundo de tudo, há um núcleo profundo – puro fogo, como em nosso planeta Terra – em que a poesia arde. Ao leitor resta resignar-se com o que tem. “Só a palavra vista por dentro/ traz algum proveito”, Edmilson diz.
Edimilson é um grande poeta: atravessa todas essas esferas com firmeza e perícia, ciente de que, ao fim, em vez de nos dar uma resposta, a palavra se derreterá em chamas. Aqui a poesia assume, de vez, o caráter de um enigma. Podemos rondá-la, persegui-la, escavá-la, mas nunca tocaremos seu coração. É como ele nos diz em um belo poema sobre dois irmãos: “herdeiros do/ ventre de ferro mordemos/ cada um segundo a sua mandíbula”. Estamos detidos para sempre na esfera do singular. A poesia só aceita o Um. Se flerta com a Série, torna-se cópia, imitação, zombaria. Desmancha-se.
Ler Edimilson, em consequência, produz aflição. Ela nos desperta e agita. Ela nos arranca do cômodo. É um objeto que toma o lugar do homem. Edimilson a compara a um criado-mudo. “Apesar da mudez a comunicação se avia. Que importa se não há verbos? A fome informa que a lida na fábrica é inadiável”. Hoje, porém, na “era da ação”, não conseguimos viver sem o verbo. Em tudo – no trabalho, na igreja, na terapia, no amor – nos obrigam a verbalizar. Esquiva, a poesia está mais próxima do silêncio. A palavra, então, se liga à escuta. Persegue Edimilson “a boca dentro do ouvido se possível/ dentro da noite”. Na noite pouco se vê, mas muito se sente. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.