Monica Benicio, 34 anos, transformou a dor em resistência. O dia 14 de março de 2018 mudou o rumo da política brasileira. A cabeça de Marielle Franco foi alvejada e até hoje o País não respondeu as perguntas básicas de um crime brutal: “quem mandou matar Marielle e por quê?”. Para os brasileiros, a morte da vereadora escancarou fragilidades democráticas. Para Monica foi a esposa que não chegou em casa. De lá para cá, o luto virou rotina e a rotina virou luta. Monica precisava falar sobre a dor para manter-se viva. Em uma sociedade machista, teve de enfrentar, no entanto, críticas por ter iniciado um novo romance ainda em meio à viuvez. Nesse turbilhão de emoções e feridas não cicatrizadas, ela ainda viu Jair Bolsonaro se eleger com um discurso que contraria todos os seus propósitos de vida — construídos lado a lado com a esposa assassinada. Como brasileira se sente envergonhada pelas políticas públicas do governo federal e os indícios de aproximação de Bolsonaro a milicianos: “são públicas as ligações da família do presidente com a milícia”. Ainda assim, ela acorda todos os dias tomada pela esperança: “se eu não tivesse plena convicção da elucidação do assassinato de Marielle, eu nem estaria dando essa entrevista”.

Como é viver em uma nação liderada por Bolsonaro?
É uma tragédia. Não precisa nem ser LGBT. Viver em um País em que o presidente da República é Jair Bolsonaro, por si só, já é uma preocupação, principalmente em relação à democracia. Bolsonaro despreza a democracia. Não tem nenhum compromisso com a população em geral. É um sujeito que nos seus trinta anos como parlamentar ficou conhecido pelo seu discurso de ódio. E só.

É possível falar que há uma cultura brasileira em contar histórias de minorias só depois da morte?
Somos um País que criminaliza as pautas de Direitos Humanos. Então, consequentemente, há esse tipo de ação. Precisamos entender que isso é gerado por um projeto de poder e que pautamos lutas para LGBTs, mulheres, negros, indígenas, quilombolas, por algo em comum: dar visibilidade a essas vidas.

A milícia vem ganhando cada vez mais força, o que significa esse poder paralelo?
Precisamos olhar com muita seriedade para a milícia. A milícia, hoje, tem projeto político: cadeira no Senado, em Câmaras estaduais e federais. A milícia é Estado. É fundamental que se invista no seu desmonte. Ainda mais por estarmos em um governo que quer flexibilizar o porte de armas.

E por que falam tão pouco em combate às milícias?
Justamente, porque é um projeto de poder. Temos no governo uma política dominada por homens brancos, fundamentalistas, heteronormativos. Um grupo que sempre permaneceu no poder, que é o topo da pirâmide social. Então, como hoje a milícia tem projeto de poder político, e tem força dentro do Estado, ela acaba sendo fortalecida. É como estar na escola ajudando os seus amiguinhos e quem não faz parte do seu grupo não se beneficia. E são pessoas perigosas, porque têm qualificação técnica paramilitar.

E sobre a ligação da família do presidente Bolsonaro com o poder miliciano…
Como brasileira, a palavra que eu encontro é vergonha. Mas eu preciso ir ainda mais além. As relações da família do presidente com a milícia são ligações que estão colocadas publicamente, como empregar milicianos e parentes no gabinete do filho do presidente e exaltar milicianos. Já foi até defendido que a milícia fosse legalizada. São informações públicas, não é uma questão de especular relações. Isso está colocado publicamente.

Mesmo nesse cenário, há ainda a esperança de que os assassinatos da Marielle e do Anderson sejam elucidados?
Se não fosse por essa esperança, por acreditar, e ter plena convicção dessa resposta, nós não estaríamos nem fazendo essa entrevista. Esse é um compromisso que o Estado brasileiro tem com a nação, não só nacional, como internacional.

Quais as principais violências que você sofre todos os dias por representar a busca por justiça?
Existem diversas e em várias escalas. Desde ataques em redes sociais até xingamentos nas ruas. Eu nunca sofri nada físico, mas em 2018 eu consegui com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos uma medida cautelar pela OEA e também estou dentro do programa de proteção de Direitos Humanos. Mas a maior violência é de uma ordem simbólica, que é, justamente, o apagamento dessa memória da família que a Marielle estava construindo comigo. Esse apagamento da minha imagem eu acho muito violento. Eu e ela demoramos muito tempo para construir a estrutura que estava nossa relação em 2018. Então, eu acho um desrespeito muito grande quando se nega a nossa história de amor.

Não é pelo fato de se negar a existência de famílias como a sua que elas serão inviabilizadas…
A ministra Damares Alves explana, de maneira muito clara, um padrão de construção familiar no seu projeto de governo de Família, Direitos Humanos e Mulheres, que, definitivamente, não representa a minha. Isso é um movimento de luta da diversidade, de garantir que não é porque não fazemos parte de um determinado modelo que devemos ser anuladas.

Como você explicaria o que é o amor para pessoas que pensam como a ministra Damares Alves?
Respeito, solidariedade e empatia. Empatia é uma palavra fundamental para que se compreenda a democracia. Porque se pressupõe que você aceite as diferenças e saiba conviver com a diversidade. E quando você tem um olhar empático pela vida do outro você também consegue fazer as modificações do que te afeta positivamente e negativamente: reconstruir-se enquanto sujeito. Precisamos olhar com mais sensibilidade o outro até para que possamos nos compreender como um ser humano melhor.

E o que é viver essa falta de empatia em meio à pandemia na qual já tivemos os cem mil mortos?
O momento que estamos passando de pandemia é um exemplo muito bem colocado, porque é falar sobre respeito, empatia e responsabilidade coletiva. O assassinato da Marielle causou uma enorme comoção, por contextos óbvios. Só que, para mim, ela foi a esposa que não chegou em casa. Nesse contexto de pandemia, em um governo que não tomou as medidas necessárias para conter as mortes, estamos falando de milhares de Marielles que não chegaram em casa.

Você perdeu um amor, o que significa essa dor?
É uma marca que eu vou carregar para sempre. Foi a destruição da minha família, de projetos e de sonhos. É uma dor imensurável e eu não sei responder isso para você. Durante o luto, eu fiquei com uma agenda lotada, porque era uma maneira de não encerrar essa relação. A primeira coisa que eu faço, ao acordar, é a contagem pelas redes sociais do dia de execução da Marielle. Mas, antes disso, ela é uma contagem pessoal. A noite do dia 14 de março, com a notícia do assassinato, não foi tão dura quanto o dia 15, que foi acordar e não ter minha companheira do meu lado. É a espécie de um pesadelo e só quando você acorda que percebe a dura realidade. Foi a materialização da dor.

O que o Brasil perdeu com o assassinato de Marielle?
Eu acho que perdemos um projeto político que era, principalmente, coletivo. Marielle fez a sua primeira campanha em 2016 e foi eleita com quase cinquenta mil votos. No corpo, ela carregava a luta de uma mulher negra, favelada, que amava outras mulheres, aspectos que a sociedade nega, por ser racista, LBGTfóbica, machista e misógina. E a sua execução é uma tentativa de deixar um recado político. Podemos entender a noite do dia 14 de março de 2018 não só como um atentado a Marielle e, sim, a um atentado contra a democracia.

O que você achou da resposta da sociedade brasileira?
Eu acho muito bonito essa preservação. Há uma grande rede de solidariedade que hoje olha para a imagem da Marielle com esperança, ressignificação e resistência. Essa resposta mostrou que a morte dela não foi em vão.

Você sempre tem insistido que ser sapatão é um ato político. O que significa isso?
Essa fala tem um cunho pessoal, porque nós, LGBTs, sempre tivemos o direito de amar como uma estratégia de segurança. Sair do armário se você quiser, mas garantindo a sua integridade. Quando eu falo que ser sapatão é um ato político está implicado anos em que eu não me assumi enquanto mulher lésbica, por medo de ser rejeitada. E hoje, estar reivindicando esse lugar, é também mostrar que essa palavra não é um xingamento.

Como é ser uma mulher lésbica em um País tão perigoso para a população LGBT?
Ser mulher lésbica no Brasil é um ato de resistência. Não digo isso porque sou uma mulher lésbica, mas, sim, por ser um enfrentamento ao machismo. Relacionar-me amorosamente com outras mulheres, não só o amor romântico, faz parte de um projeto coletivo dessa revolução feminista que está em curso.

Em fevereiro desse ano você virou alvo de manchetes que falavam sobre o seu novo relacionamento. Como foi passar por essa situação?
Eu me torno uma pessoa pública porque a minha companheira, a minha esposa, foi assassinada. A partir disso, de uma luta para um pedido de justiça, em defesa daquilo que ela defendia, eu viro essa pessoa pública. Quando eu assumi o meu novo relacionamento, em fevereiro desse ano, dois anos depois do assassinato da Marielle, sequer foi pelo meu desejo ou vontade de deixar isso visível. O que aconteceu foi que uma nota de jornal, super sensacionalista e bastante violenta, tratou o meu namoro como algo vulgar. O comprometimento deveria ser com o fato de uma vereadora ter sido assassinada e o Estado não ter respondido uma pergunta tão importante: quem foi o mandante do crime? Ao invés disso, a notinha do jornal tinha mais interesse em descobrir com quem eu estava dormindo ou deixando de dormir.

Como você enxerga esses apontamentos na sua vida pessoal?
Por trás disso existe uma “lesbofobia” (preconceito contra mulheres lésbicas) muito grande, machismo e misoginia. O lugar da viúva já é muito duro e muito triste. Pressupõe-se aí que você perdeu uma pessoa que você amava, é muito duro e a sociedade ainda colabora para esse lugar. Porque o machismo e a misoginia vão atravessar esse cenário de maneira a achar que o corpo da mulher tem que ser deixado ao abandono, condenado a solidão, para que só possa ser legitimada a relação anterior — que foi interrompida. O fato de eu estar em um relacionamento novo não significa que eu tenha superado o luto. Marina Íris é uma companheira e parceira de justiça.