A Lava Jato morreu, mas não vai descansar em paz. No Palácio do Planalto, no Congresso, no STF, nos partidos políticos, em setores do próprio Ministério Público e da advocacia, em parte da imprensa, há uma sanha para desmoralizar e punir os protagonistas da operação e desfazer muitos dos seus resultados. Nesse contexto, é fundamental distinguir a Lava Jato do lavajatismo.

O lavajatismo, para usar a expressão do ministro Edson Fachin, é uma “doença infantil” que tem sintomas no campo jurídico e político.

Os primeiros foram revelados de forma aguda pelas mensagens entre Sérgio Moro e os procuradores da força tarefa, vazadas por hackers. Em diversos momentos, o magistrado e os procuradores pareciam atuar em dobradinha, com o juiz dando conselhos e tomando providências para que as peças de acusação fossem as mais fortes possíveis.

O sintoma político do lavajatismo está na ideia de que entregar o poder a homens puros, salvadores da pátria que vêm de fora do “sistema”, é a única maneira de resolver os problemas do Brasil.

Nada disso é bom. A relação promíscua entre juiz e procuradores feriu o Estado de Direito. A criminalização da política no atacado deu no que deu: um deputado autoritário como Bolsonaro, com quase três décadas de história no baixo clero do Congresso, onde só se distinguiu por vomitar ofensas, de repente foi visto como “novidade” apta a ocupar a presidência.

A Lava Jato não se confunde, ou melhor, não precisa se confundir com essas deformações. Basta que haja pessoas, especialmente juízes do STF, dispostos a separar cuidadosamente o joio do trigo.

A tendência nos últimos tempos é ver na operação um amontoado de procedimentos escabrosos, todos eles frutos do maquiavelismo de Sérgio Moro, responsável pela criação de um Código de Processo Penal paralelo. A prova disso estaria numa expressão usada pelos procuradores em conversas informais: eles falavam do “CPP do Russo”, sendo Russo um apelido de Moro.

É bom lembrar, no entanto, que a Lava Jato começou, em 2014, usando como ferramentas leis contra crimes de colarinho branco que acabavam de ser aprovadas. Não havia jurisprudência, nem prática consolidada, sobre elas.

Não foi só Moro que viu ali uma oportunidade para processar, de uma nova forma, personagens que costumavam ficar imunes nos grandes casos de corrupção e crime organizado: os chefões.

Todas as inovações da Lava Jato – seja na duração das prisões provisórias, no trato das delações premiadas, nas definição do juízo competente para certos casos, e assim por diante – foram obras coletivas. Podem ter começado com Moro, mas foram ratificadas por instâncias superiores. Ministros do STF, em particular, deveriam pensar duas vezes antes de descrever como “abusos”, de responsabilidade exclusiva da Lava Jato, inovações processuais que eles mesmos chancelaram.

A suposta parcialidade de Sérgio Moro ao julgar certos réus, como Lula, também deveria ser abordada com muito menos paixão, ao menos no STF.

Se conversas entre o juiz e os procuradores da Lava Jato sugerem a intenção antecipada de punir, é preciso perguntar se isso não foi resultado do grande acúmulo de provas e evidências, numa operação que se estendeu por anos e que, a cada nova fase, trazia à tona surpresas cada vez maiores, como o inacreditável “departamento da propina” da Odebrecht.

O risco de que o juiz sofra esse tipo de “condicionamento” numa operação muito longa foi justamente uma razão – sensata – pela qual se decidiu criar o juiz de garantias no Brasil. Mas ter o impulso de julgar um réu pelo conjunto dos seus pecados não é a mesma coisa que ceder a esse impulso, distorcendo o direito e as provas para inventar uma punição. O STF deveria dar peso quase exclusivo às evidências do processo na hora de decidir sobre a parcialidade de Moro.

Seja qual for o futuro da Lava Jato nos tribunais, aqueles que pretendem participar das eleições em 2022, sem se atrelar ao PT ou a Bolsonaro, precisam trabalhar para que os fatos incontestáveis revelados pela operação não sejam varridos para baixo do tapete.

É proibido deixar que os brasileiros se esqueçam: o PT e vários partidos do Centrão, hoje aliados a Bolsonaro, usaram a Petrobras como fonte de dinheiro para financiar suas atividades políticas e um projeto de poder. O esquema era tudo, menos trivial: envolvia um cartel de empreiteiras, funcionários públicos, doleiros e outros agentes financeiros. Muita gente enriqueceu pessoalmente, embolsando o dinheiro público.

Talvez políticos como Lula tenham seus julgamentos na Lava Jato anulados. Ficarão livres. Mas os fatos deveriam bastar para que não saiam impunes, ao menos politicamente.

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Um longo PS: O advogado de Lula, Cristiano Zanin, disse hoje que não pretende usar as mensagens hackeadas dos telefones de Sérgio Moro e dos procuradores da Lava Jato nas ações contra o ex-presidente que correm no STF. Segundo Zanin, o que veio a público dessas conversas já deixa claro que Moro foi um julgador parcial.

A informação de que o advogado não pretende incluir as mensagens nos processos lança uma luz muito estranha sobre o julgamento que ocorreu ontem na Segunda Turma do tribunal, e que

teve como efeito prático manter o acesso de Zanin e sua equipe ao conjunto do material roubado pelos hackers.

Se o uso das mensagens não será jurídico, será o quê? Resposta: será político, como já vem acontecendo.

Com isso, há duas possibilidades. Na primeira, os ministros do STF, Leandro Lewandowski em especial, fizeram papel de bobos ao liberar o acesso às mensagens. Acharam que estavam dando uma ferramenta processual à defesa de Lula, mas na verdade lhe deram apenas uma ferramenta de comunicação política.

A segunda hipótese é que os ministros, Leandro Lewandowski em especial, estão confortáveis com essa situação. (Edson Fachin seria exceção, pois discordou da maioria.) Levando em conta o fato que mantiveram com Lula, na íntegra, um material obtido ilegalmente, antes que se fizessem, por exemplo, perícias para saber se houve alguma espécie de adulteração nas mensagens, parece que isso faz sentido.