05/09/2018 - 13:08
Professor de direito penal e doutor em ciências criminais, Salah H. Khaled Jr decidiu usar alguns dos conceitos do direito para mergulhar em um dos assuntos que lhe são mais caros: o universo dos games. Jogador, ou gamer, há mais de 30 anos, ele se dedica a desconstruir a teoria de que games estimulam a agressividade em “Videogame e violência: Cruzadas morais contra os jogos eletrônicos no Brasil e no mundo”. Segundo ele, a criminalização tanto dos games quanto de seus consumidores fere a liberdade de expressão, e que todos os ataques a esse universo, geralmente feitos por pessoas sem nenhuma intimidade com ele, são, em última análise, ataques também às artes e às manifestações culturais. Para o autor, o maior risco é deixar que organizações ou o próprio Estado determinem o que um adulto pode ou não ser consumido com base em julgamentos morais pessoais.
O que te motivou a escrever o livro?
Comecei o escrever em 2013, após o caso Pesseghini. Você deve se recordar daquela situação em que um menino de treze anos supostamente seria responsável pela chacina de sua família. Comecei o livro em outubro de 2013, movido por uma dupla indignação. Como gamer, me senti ofendido por mais um episódio daquilo que depois, trabalhando o conceito, defini como criminalização cultural, que é a acusação de que um jogo teria efeitos criminógenos, provocaria agressividade, dessensibilização e, em última hipótese, transformaria crianças e adolescentes em máquinas de matar. E a outra parte justamente pelo garoto ter sido retratado como responsável, o que naquele momento inicial me pareceu bastante estranho, e o que apareceu tanto nos meses seguintes quanto nos últimos anos reforçou a hipótese da inocência do garoto, que inclusive eu defendo no livro.
“Videogame e violência” sai em um momento em que a sociedade volta a debater temas de maneira mais conservadora. O lançamento agora foi proposital?
O ‘timing’ eu não calculei, mas colabora para a relevância da obra. Em última análise eu discuto a criminalização da própria cultura, não somente dos games. Por isso que me refiro a outras cruzadas contra as histórias em quadrinhos ou o rock. No ano passado vimos várias cruzadas contra expressões culturais, como o caso da exposição no Santander, ou o quadro “Pedofilia”, apreendido em Campo Grande; ou ainda a peça proibida em Jundiaí porque contava com um Jesus Cristo transgênero. Estamos realmente vivendo tempos de intolerância.
Qual o perigo desse tipo de cruzada contra as artes?
O fato de alguém empreender cruzadas contra expressões que vão contra seu padrão moral, visto como superior ao de outras pessoas, é uma contradição flagrante à Constituição. O artigo 5º, inciso 9, claramente estabelece a liberdade de expressão artística como um direito fundamental do cidadão, não só de criadores de produtos culturais, mas também dos produtores e das obras em si. É muito perigosa a ideia de que o Estado possa definir o que eu ou você podemos consumir como adultos. Essa é uma questão essencial para um Estado democrático de direito. Esses juízos cabem ao cidadão e não ao Estado ou, muito menos, a organizações que pelos seus próprios motivos ou propósitos queiram combater expressões artísticas.
Você cita o exemplo do Judas Priest, em que a banda foi absolvida da acusação de que suas músicas teriam causado o suicídio de dois jovens em 1990. São casos em que as artes são usadas como bode expiatório para evitar discutir questões mais complexas.
Ao longo da história sempre houve uma espécie de batismo de fogo que diferentes formas de expressão artística tiveram que enfrentar. Quando a Suprema Corte aprecia a liberdade artística dos games, e efetivamente a reconhece, o ministro que faz o voto vencedor faz um histórico e mostra que a mesma Suprema Corte dos Estados Unidos já proibiu radionovelas. O motivo principal que faz com que o pânico contra os games se mantenha é que eles têm sido utilizados como bodes expiatórios para inúmeros episódios de violência real. Em algumas das maiores tragédias em solo norte-americano, e principalmente massacres em escolas, como Columbine, Virginia Tech, Sandy Hook, os games são usados como bodes expiatórios para o controle das armas de fogo. Essa situação se diferencia do Brasil. A segunda emenda da Constituição norte-americana trata especificamente desse porte de armas de fogo para que o cidadão possa se defender do próprio Estado se for necessário. Então, para eles, essa é uma questão fundante de uma maneira que para nós, brasileiros, certamente não é.
Mesmo assim, vemos que existe o mesmo tipo de pânico contra os games também no Brasil.
Nos Estados Unidos há uma razão muito forte para que os jogos sejam transformados em bodes expiatórios. E apesar disso, nenhum jogo jamais foi banido ou proibido por lá, em nenhuma circunstância. Aqui, no Brasil, onde a gente não tem essa situação tão forte relativa ao controle de armas de fogo, pelo menos 10 títulos foram proibidos. E esses jogos foram banidos sem que os magistrados sequer tivessem tomado contato direto com eles. Sequer os viram funcionando na sua frente. É o que chamamos de decisionismo no direito. É uma decisão sem lastro probatório. A decisão é tomada com base nos juízos morais dos magistrados.
Quais são os argumentos usados pelos magistrados na proibição desses games?
O fundamento utilizado é uma ponderação completamente desastrada entre uma necessidade de proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes de um lado, e liberdade de expressão artística de outro. Eles dizem que diante dessa circunstância a liberdade de expressão deve ser afastada em nome do bem-estar de crianças e adolescentes. Só que isso é completamente equivocado porque você não pode banir um produto destinado a adultos com base na suposta tutela de crianças e adolescentes. Se é assim nós eliminaríamos boa parte do que existe de expressão artística nesse mundo.
Essa discussão de que tal jogo é absurdamente violento não acaba motivando as pessoas a correr atrás deles para saber o que há de tão terrível para que eles tenham sido banidos?
Um dos casos mais absurdos é o da proibição do Carmageddon. Ele foi proibido porque supostamente era um jogo criminógeno que transformaria as pessoas em homicidas quando elas estivessem atrás do volante. Aí os caras proíbem esse jogo no Brasil no final da década de 1990, quando o mercado oficial de games de PC no país naquele momento era absolutamente incipiente. A matéria que inicialmente relata aquilo praticamente viraliza, é comentada no país inteiro, e isso gera uma curiosidade gigantesca sobre o produto. O que vai fazer com que milhares de pessoas que jamais teriam ficado sabendo que ele existia efetivamente procurem cópias piratas do Carmageddon. Olha o paradoxo: há uma medida que pretende combater a criminalidade, porque o jogo supostamente é criminógeno e vai gerar homicídios, mas o resultado é que ela acaba maximizando a criminalidade, porque as violações de direitos autorais daquele produto cultural vão para a estratosfera.
O que pode ser feito para minimizar esse estigma que os games têm?
Você pode começar com uma questão de demografia. Qual o público consumidor dos games? Muitos acham que games são destinados a crianças ou adolescentes do sexo masculino, e isso não é verdade. O público consumidor de games está na faixa entre os 25 e 45 anos, que joga em uma parcela considerável de seu tempo livre. São pessoas de todos os parâmetros culturais, sociais, políticos, religiosos, e o público feminino é quase tão grande quanto o masculino. O segundo ponto é estabelecer que um game é uma forma de expressão artística como é um filme, um livro, uma pintura, ou qualquer outro produto cultural. Não pode haver um critério diferente para os games que há para outros produtos culturais.
O que vemos na prática é um critério diferente para os jogos.
Se construiu um nível de estigmatização tão grande que tanto o produto cultural quanto o criador quanto o consumidor saem demonizados desse discurso. É como se o gamer fosse anormal. Se você disser que fará uma maratona da sua série preferida que saiu na Netflix ninguém vai estranhar. Agora, se disser que vai fazer uma maratona de games como Battlefield já surge um desconforto. O fato é que nós somos consumidores de violência. Faz parte da nossa dieta cultural. O que acontece é que um jogo como GTA vai te permitir consumir violência de um modo que nenhum outro produto cultural te permite. Pelo contrário, vai ser uma espécie de antídoto contra o tédio.
É uma desobediência civil controlada.
É uma boa definição. Na criminologia, quando discutimos a origem da violência, uma das coisas que falamos é sobre a sedução da transgressão. Nesse mundo contemporâneo regido por tantos controles, existem certas ações violentas que não visam ganho financeiro, mas a sensação de excitação. O sujeito sai fora do controle social, ele viola as regras para sentir que está vivo. Um produto como o GTA te permite experimentar essas sensações. É uma afirmação da liberdade. Não é por acaso que vende tanto. Poderíamos dizer que ele satisfaz uma angústia existencial das pessoas.
E quanto aos estudos publicados sobre a relação entre videogames e violência?
Eu me debrucei sobre todos os estudos que afirmam que os jogos provocam agressividade e dessensibilização. Fiz um levantamento geral desses estudos e eles são manifestamente inconclusivos. Eles têm problemas sérios de metodologia, de generalização de resultados, de falta de fundamentação teórica e de uma base epistemológica. Os pesquisadores são financiados por organizações anti-games. A pesquisa é um modo de demonstrar a convicção moral do seu pesquisador. O que é um problema significativo.
Há estatísticas que indiquem uma relação entre games e um aumento dos crimes?
As estatísticas da criminalidade violenta, e especialmente de homicídios, são as mais seguras que a gente tem, porque o homicídio é um crime com alto índice de notificação. Um grupo de pesquisadores se propôs a observar, nos Estados Unidos, as estatísticas de mortes violentas nos meses que se seguiram ao lançamento de grandes jogos de séries consolidadas que têm uma conotação violenta, como Battlefield, GTA, Mortal Kombat. Eles fazem esse balanço e concluem exatamente o oposto: ou as estatísticas de criminalidade violenta permanecem no mesmo patamar ou elas caem significativamente. Eu não teria a ousadia que um game violento é uma válvula de escape para a agressividade. Mas no mínimo isso demonstra exatamente o oposto daquilo que dizem os autores que sustentam que há uma reação de causa e efeito entre videogame e violência.