Se em outras partes do mundo, há algum motivo para comemorar, no Brasil reina a escuridão. Por aqui, o governo federal, sob a condução insana do presidente Jair Bolsonaro, se apresenta como uma força sabotadora dos esforços de combate à pandemia e, numa situação de extrema emergência, não consegue colocar um plano de vacinação de pé. Boicota vacinas como a Coronavac, desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac em conjunto com o Instituto Butantan, se atrapalha na aquisição de insumos indispensáveis para a maior campanha de vacinação da história, menospreza a escala do programa de imunização, que envolve 340 milhões de doses anuais, e se perde numa política mesquinha e destrutiva. A grande esperança da população de superar a doença é frustrada em todo momento e o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, não consegue dar uma resposta rápida para o que quer que seja, além de demonstrar de que não tem ideia do que está acontecendo.

APARELHAMENTO O presidente da Anvisa, Barra Torres, encabeça o discurso protelatório das autoridades sanitárias brasileiras: sem pressa
Sem um comando técnico centralizado, o Brasil avança célere rumo ao precipício. Há um recrudescimento do contágio em todo o País, que já registra 6,73 milhões de infectados e 180 mil mortos, e Bolsonaro se posiciona como líder mundial da falta de responsabilidade. Pazuello e o diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antônio Barra Torres, que deveriam ser lideranças ativas, são seus títeres. Na segunda-feira 8, diante da inoperância e da lerdeza federais, o governador de São Paulo, João Doria, se antecipou ao Ministério e anunciou um plano estadual de vacinação, que, numa primeira fase, pretende imunizar 9 milhões de pessoas do estado num período de três meses com a Coronavac, que ainda depende da aprovação da Anvisa. O público prioritário dessa primeira fase, que começa dia 25 de janeiro e vai até 22 de março, será de 9 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, além de trabalhadores de saúde e indígenas e quilombolas. “Não estamos virando as costas para o plano nacional de imunização, mas precisamos ser mais ágeis”, justificou Doria.
A providencial iniciativa paulista deixou exposta a inoperância federal e disparou uma onda de cobrança dos governadores de todo o Brasil por um plano nacional de vacinação. No dia seguinte ao anúncio de Doria, Pazuello teve uma reunião com os governadores e foi pressionado a tomar providências. O que se viu foi uma preocupação geral com a falta de estratégia nacional e com a demora do governo em fechar acordos de compra de vacinas. O governador do Maranhão, Flávio Dino, ingressou com uma ação judicial no Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de permitir que os estados brasileiros possam adquirir imunizantes diretamente. Pelo menos 11 estados fizeram contratos com o Butantan para aquisição da Coronavac, que começou a ser produzida no Brasil na semana passada – o instituto pretende produzir um milhão de doses por dia. O Poder Legislativo também reagiu. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, destacou a gravidade da demora do governo e disse que o Congresso irá estabelecer um plano de imunização com ou sem o Executivo.
A tensão federativa aumentou porque o ministro disse que demorará pelo menos 60 dias para a Anvisa aprovar qualquer vacina contra o coronavírus e que adotará a Coronavac “se houver demanda”. Doria cobrou Pazuello pelo fato da Coronavac não estar incluída até agora no plano nacional de imunização. São Paulo reivindica uma aprovação de emergência para a vacina, cujo estudo de eficácia estará concluído na terça-feira 15, mas a Anvisa não contemplava essa possibilidade e tratava o imunizante do Butantan com preconceito. Só na quinta-feira 10, a agência reguladora, diante de uma pressão crescente, realizou uma reunião extraordinária para definir as regras do uso emergencial de vacinas contra a Covid-19. “Esse prazo de 60 dias dado pelo ministro é indecoroso”, afirma o médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Anvisa. “A Anvisa pode aprovar uma vacina em uma semana”. Vecina diz que a preocupação principal no momento é a emergência sanitária e a Anvisa, com seu corpo técnico preparado para analisar pedidos de registro, tem condições de aprovar a vacina em poucos dias. “Claro que há demanda”, disse Vecina, referindo-se ao questionamento de Pazuello. “Há necessidade de vacinar toda a população brasileira”.
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Enquanto avança a passos de tartaruga, o governo trata de aparelhar a Anvisa para agir de acordo com seus interesses. O diretor-presidente Braga Torres ironizou a intenção de João Doria de iniciar a campanha no dia 25 de janeiro e também falou em um tempo mínimo de 60 dias para aprovar a vacina. “Não fixamos um mês ou dia de aprovação. Para as autoridades que assim fazem, desejo boa sorte. Enquanto isso, continuaremos trabalhando com o mundo real, o mundo científico”, disse, numa crítica ao governo paulista. “Quando recebermos algum pedido de autorização emergencial, iremos analisá-lo”. Atualmente, quatro vacinas estão na fase 3 dos testes clínicos no Brasil: a Coronavac, a da Pfizer/BioNTech, a da Astra Zeneca/Oxford e a da Janssen-Cilag. Além da Coronavac, a mais adiantada nos trâmites regulatórios é a da Pfizer, que teve aprovação emergencial em vários países. Pazuello declarou que o governo negocia a compra de 70 milhões de doses desse imunizante e que existe uma pequena chance de acontecer alguma vacinação em dezembro.

“Nós precisamos de uma Revolta da Vacina ao contrário” Margareth Dalcolmo, pneumologista da Fiocruz
“Nós precisamos de uma Revolta da Vacina ao contrário”, disse a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), referindo-se à rebelião da população do Rio de Janeiro, que reagiu contra a vacinação da varíola em 1904. “Agora a revolta da sociedade é para ser vacinado”. Margareth diz que o governo perdeu o prazo para a compra dos primeiros lotes de vacinas e outros insumos e ameaça a segurança sanitária dos brasileiros, “O Ministério da Saúde deveria estar aberto para novas negociações, mas o Brasil perdeu o timing”, disse. “Além disso, a falta de um discurso harmônico entre a ciência brasileira e as autoridades está sendo desastrosa”. O Brasil está se destacando como o País mais mal ajambrado na organização da vacinação em massa contra a Covid-19. E com seu curandeirismo charlatão, o presidente já pode ser responsabilizado diretamente por uma parte das mortes no País, numa espécie de “efeito Bolsonaro”. “Já existem muitas manifestações de cientistas a esse respeito (o aumento dos óbitos por causa da reação do governo)”, disse Vecina. “Pelo menos 40% das mortes podem ser creditadas à falta de liderança sanitária no Brasil”.