Aos 43 anos, Rodrigo Oliveira vem alçando vôos altos e compartilhados. Seu restaurante Mocotó, que nasceu como “Casa do Norte” do pai pernambucano Zé Almeida, na Zona Norte de São Paulo, completará 50 anos de história em outubro. “Meu pai criou o lastro sobre o qual está erguido tudo o que temos”, diz o chef. Responsável por colocar a culinária sertaneja na rota gastronômica do Brasil, com cinco restaurantes em São Paulo, e do mundo, com seu dadinho de tapioca sendo reproduzido até no estrelado Enigma, do espanhol Albert Adrià, o chef é, sobretudo, ativista. Premiado nacional e internacionalmente, ele é articulador do Quebrada Alimentada, que distribui cestas e marmitas à comunidade da Vila Medeiros com o apoio da ONG Gaia +, e de dois projetos agroflorestais, o Sítio Mulungu, em São José dos Campos (SP), e a Fazenda Maniwa (PE), ao lado da esposa, a historiadora Adriana Salay. Após substituir Henrique Fogaça como jurado da décima edição do MasterChef Brasil, junto a Helena Rizzo e Erick Jacquin, ganhou um quadro de receitas no programa Melhor da Noite, às quartas, na Band.

Em um País em que 70,3 milhões estão em estado de insegurança alimentar moderada e 21,1 milhões, grave, ainda é tabu falar sobre o tema no universo da gastronomia?
Com certeza, porque a gastronomia é a arte dos excessos. Estamos sempre querendo o mais fino, o mais raro, o mais exclusivo. Em um País de tantas discrepâncias como o Brasil, acaba sendo contraditório ficar cultuando esse nível de exclusividade. Só que isso não é o causador da desigualdade, é um sintoma dela. Nós, cozinheiros e restaurantes, temos uma permeabilidade tão grande que somos um ótimo ponto de partida para mudar a realidade. O poder que a gastronomia tem de impacto social é enorme e talvez importem menos o formato e a apresentação da comida que servimos do que a cadeia diversa que alimenta clientes e que se relaciona com um grupo muito maior, de fornecedores, prestadores de serviço, colaboradores, entregadores. A alta gastronomia tem seu papel, mas a excelência pode se expressar de outra forma. Será que não estamos preocupados demais com estrelas, sendo que podemos nem ter água potável muito em breve?

O que falta para essa virada de chave, em sua opinião?
Acho que para a sociedade como um todo, não só para o setor, falta consciência política. Eu mesmo estou me alfabetizando agora nessas questões, em boa parte com a ajuda da Adriana [Salay, esposa], que é uma grande ativista e acadêmica, politizada desde sempre. Não deveríamos lutar por um negócio, mas por uma sociedade. Não existe sucesso sem política pública, educação, saúde e transporte. Para um negócio ser sustentável, ele precisa estar dentro de uma comunidade saudável.

Na pandemia, você criou o projeto Quebrada Alimentada, de combate à fome no bairro em que vive e trabalha, e que faz parte da história da sua família na cidade. Qual é o papel da “quebrada” em alimentar a “quebrada”?
Mais do que segurança, é fundamental que as pessoas tenham soberania alimentar. Quando começamos o Quebrada [Alimentada], apesar de a Adriana estudar o tema da fome há muitos anos, nenhum de nós tinha noção do desastre e da crise que estavam por vir. Ter acesso à alimentação saudável e digna tem a ver com renda, o que nós não vamos resolver. É um problema que combatemos fomentando negócios e fortalecendo parceiros, mas a longo prazo é uma construção que envolve iniciativa privada, poder público, terceiro setor. O Quebrada nasceu como essa resposta emergencial, mas temos a consciência de que é preciso fazer mais, com ações ligadas à educação, o empoderamento das pessoas e transações diretas, como a construção de cozinhas solidárias.

“É mais fácil ganhar Michelin que colher um tomate saudável”, diz chef Rodrigo Oliveira, do Mocotó
“Além de ser da ‘quebrada’, a Ana Carolina [Porto] é um perfil improvável na trajetória do programa. São poucas pessoas como ela que chegaram lá” (Crédito:Divulgação)

Desde 2020, foram doadas mais de 100 mil refeições e 70 toneladas de alimentos. As mudanças são visíveis, tanto com o fim da emergência sanitária da Covid-19 quanto do governo Bolsonaro?
É muito difícil dissociar a pandemia da gestão. O que é fácil dizer é que quem tinha menos perdeu mais. Só que o problema que vivemos hoje é saldo de uma história de violências e desigualdades, que não vai se resolver em um governo, com uma pessoa. De tudo que deveríamos ter aprendido com relação à política é que não há um salvador. E quem tem privilégios tem que entender que se não abrir mão de parte deles vai estar condenado a uma vida de medo. Já dizia o pensador Josué de Castro: “Metade da humanidade não come; e a outra não dorme, com medo da que não come.” Não tenho ingenuidade de culpar A ou B, só sei que a resposta não está nos velhos costumes e personagens. Precisamos de uma reforma profunda, política e social. Sinto que falta uma visão de longo prazo, pois temos soluções imediatas que podem aumentar a produtividade, mas que contaminam o solo, poluem os rios, derrubam as florestas. Há mais consciência do que na gestão passada, mas faltam coragem e recursos para combater as pressões internacionais e do capital.

Qual a importância do posicionamento dos chefs, sobretudo após tantos retrocessos quanto às políticas públicas voltadas à alimentação?
Quando um chef de cozinha se posiciona ele praticamente está levando consigo todo mundo, seja quem trabalha no restaurante ou a comunidade ao seu redor. Acaba assumindo a voz, mesmo que não seja intencional, de um coletivo que é diverso em seus posicionamentos e ideologias. As pessoas estão dando espaço e querem ouvir o que os cozinheiros têm a falar, não à toa estamos nas capas de revista e nos programas de televisão, mas com mais alcance vem mais responsabilidade. Não é só um post de rede social. Afeta o negócio como um todo, faz cair contratos e a frequência, gera ameaças. Há um impacto direto e pesado na vida prática. Por isso nós deveríamos assumir a política como tema do cotidiano. Se for sempre tão desgastante e temeroso falar sobre isso, as pessoas vão participar cada vez menos. Precisamos criar um cenário em que todos possam se colocar, mas que saibam fazer isso de maneira muito elegante e cuidadosa.

Como foi ver a “quebrada” vencer o MasterChef Brasil de que você foi jurado, na final do último dia 12?
Eu me identifiquei com muitos participantes. Tinha um pernambucano, pessoas que vinham de outras profissões, pessoas encantadoras por si só e tinha a Ana Carolina [Porto], do Grajaú, no extremo sul de São Paulo, que veio com uma baita história de vida e que dividia comigo a origem suburbana periférica. Além de ser da “quebrada”, ela era um perfil improvável na trajetória de dez temporadas, pois são poucas pessoas como ela que chegaram lá. Ela representa um grupo muito grande de homens e mulheres que tiveram poucas oportunidades e referências, mas que têm um nível de talento, sensibilidade e vontade que faz toda a diferença. A Ana jamais teria vencido se o programa tivesse cinco episódios, porque ela se construiu ao longo do tempo. Ela ouvia, como o [Erick] Jacquin frisou muito bem, prestava atenção. Foi muito merecida a sua vitória.

Houve críticas à sua postura de “bonzinho” no júri do programa. Por que os espectadores ainda buscam comportamentos extremados na cozinha?
Nós banalizamos o estresse. Hoje metade da população brasileira convive com ansiedade e 20%, com depressão. A cozinha é um ambiente intenso, exigente e de muita pressão. O restaurateur norte-americano Will Guidara, um dos que codificou a hospitalidade, diz que quando um bom chef chega, duas coisas acontecem: todo mundo sorri, mas todos sabem que vão ter que entregar um pouco mais. Para mim, essa é uma definição do que deve ser uma boa liderança. Passamos a cultuar uma imagem de chef de cozinha que não tem utilidade na vida prática. O chef estrela, temperamental e agressivo. Quando você precisa fazer o negócio acontecer é importante trabalhar com pessoas equilibradas, que assumem compromissos e são consistentes na entrega, que ajudam os outros a melhorarem. É nisso que o cozinheiro deve mirar, no domínio do ofício, do gestual. Quando você vê a performance de um grande músico, ela vai além do som. Você observa a postura, as expressões. Isso aumenta sua percepção do produto, que é a música. É a mesma coisa com o cozinheiro. Como ele trabalha, como faz o corte, tudo isso tem um impacto no conjunto da obra.

Comer é um ato político. Apesar da profusão de reality shows e perfis nas redes sociais, pesquisas apontam que os brasileiros estão cozinhando menos. Os programas de hoje ocupam mais a função de entretenimento?
Eu lembro do chef norte-americano Dan Barber, no livro The Third Plate, falando que o movimento “farm to table” [do campo à mesa] era maravilhoso, exceto pelo fato de que ele não resolveu nada, porque há cada vez menos pessoas no campo e o agronegócio vai avançando sobre a agricultura que deveria ser chamada de convencional. Esses movimentos, por mais bonitos que sejam, não têm força para reverter algo muito maior, que tem a ver com política pública. Como você impede que pessoas comprem terra para especulação? Como você evita um negócio que sabidamente vai esgotar recursos e deixar a terra arrasada? A resistência é importante, ter pessoas como a Rita Lobo nos ensinando a cozinhar em casa é fundamental, mas não resolve. Como resolve? Criando condições para uma mãe que trabalha fora ter uma jornada digna o suficiente para chegar em casa e ter força e tempo para cozinhar. É importante também que uma maçã não seja mais cara que um pacote de bolacha recheada. Precisamos falar de cozinha, mas só isso não vai reverter o fato de as pessoas estarem cada vez mais consumindo produtos e menos comida. Não à toa os indicadores de doenças crônicas ligadas a hábitos alimentares só crescem e essas curvas são proporcionalmente opostas.

“É mais fácil ganhar Michelin que colher um tomate saudável”, diz chef Rodrigo Oliveira, do Mocotó
“Já dizia Josué de Castro, ‘metade da humanidade não come; e a outra não dorme, com medo da que não come’. Precisamos de uma reforma profunda, política e social” (Crédito:Divulgação)

Em nome da alimentação saudável, chefs realizam o sonho do sítio próprio, produzindo orgânicos, preservando a mata nativa. Qual sua intenção com as fazendas?
Assim como o restaurante é um lugar de restauração, do qual as pessoas saem melhor, física e emocionalmente, nos sítios podemos nos restaurar e fazer o mesmo com a terra. Eles funcionam como uma alfabetização da linguagem do campo, até para dialogar com incontáveis parceiros que estão efetivamente vivendo disso. A primeira coisa que aprendi foi que é muito mais fácil ganhar uma estrela Michelin do que colher um tomate maduro e saudável. Isso só aumentou o respeito que já era grande pelo trabalho das pessoas que efetivamente fazem a comida. O chef só se apropria dos elementos e transforma, agrega valor, tenta fazer algo que os honre. A ideia não é ser autossuficiente, ter ganho econômico, até porque duvido que eu vá produzir um tomate melhor do que um agricultor cuja vida é dedicada a isso.