Experiência adquirida em combate fortaleceu a indústria de defesa na Ucrânia, tornando Kiev um potencial exportador dessa tecnologia para a Europa. Governo avalia formas de internacionalizar a produção.A duradoura guerra na Ucrânia levou a uma proliferação de empresas fabricantes de drones no país. O uso intensivo dos dispositivos em combate ampliou a experiência ucraniana na produção do equipamento, posicionando Kiev como um possível exportador da tecnologia para nações europeias.
A internacionalização de sua produção era rejeitada pelo governo ucraniano, que preferia concentrar o uso dos dispositivos nacionais na guerra contra a Rússia. Após pressão do setor, contudo, o presidente Volodimir Zelenski lançou em junho o programa "Construa com a Ucrânia", que permite o acesso de aliados europeus às tecnologias nacionais, aliada à abertura de linhas de produção conjuntas.
Yaroslav Azhnyuk, fundador e CEO da empresa de drones autônomos The Fourth Law, diz que os drones ucranianos podem parecer "menos avançados" em termos de engenharia, mas, quanto à produção e ao ecossistema, "há um argumento muito bom para que as empresas ucranianas ofereçam essa capacidade como um serviço para nossos parceiros europeus", disse ele à DW.
A aposta é que as centenas de empresas instaladas no país possam ganhar mercado por produzirem modelos que, apesar de simples, acumulam experiência de combate. O momento é favorável ao setor, uma vez que países europeus estão ampliando cada vez mais seus gastos com defesa.
Flexibilidade amplia produção
A flexibilidade definiu o sucesso da Ucrânia com drones na guerra contra a Rússia até o momento. Os fabricantes recorrem a componentes disponíveis no mercado, muitas vezes combinando drones ou peças importadas com computadores de bordo simples, programas de código aberto e até peças impressas em 3D.
O uso dos chamados drones FPV (de visão em primeira pessoa) permitiu aos operadores criar uma classe de "kamikazes" letais, ainda que simples, guiando um dispositivo carregado de explosivos com um headset até um alvo mais valioso, como um tanque.
Outros drones podem lançar explosivos ou minas, enquanto alguns são usados para vigilância. Já os chamados drones de ataque profundo, mais robustos, voam até o interior do território russo e foram usados em uma série de ataques surpresa neste ano. O país também passou a produzir drones interceptadores ou caçadores para conter a escalada dos ataques russos contra cidades do interior.
As empresas afirmam que estão importando menos peças e fabricando cada vez mais componentes próprios, enquanto aprimoram tecnologias como a telemetria, que permite coletar e transmitir dados remotamente.
Desafio orçamentário limita produção
Contudo, embora a capacidade de produção da Ucrânia tenha crescido, o orçamento não acompanhou. Em junho, Zelenski afirmou que o país só tinha recursos para financiar 60% dos produtos de defesa que seria capaz de fabricar.
Além disso, grupos do setor acreditam que a indústria de drones ucraniana atingirá um limite de produção e deve permanecer restrita ao mercado interno.
Concorrentes como a fabricante alemã Helsing, que desenvolve drones equipados com inteligência artificial, já atraíram investimentos internacionais expressivos. A empresa consegue fabricar seus drones fora da Ucrânia e, mesmo assim, utilizá-los dentro do território ucraniano.
Falando à DW, Kateryna Mykhalko, diretora-geral da Tech Force in UA, uma coalizão de mais de 70 empresas de tecnologia voltadas à defesa, defendeu que "o sistema deveria ser equilibrado".
"Se uma empresa puder produzir mais do que o governo pode comprar, ela deveria ter a chance de atuar internacionalmente", disse.
Empresas defendem internacionalização
Do ponto de vista industrial, a possibilidade de exportar atrai novos investimentos e facilita a criação de joint ventures com empresas estrangeiras. Neste modelo, companhias ucranianas e estrangeiras poderiam fazer acordos pontuais para produção de equipamentos. A estratégia é defendida por fabricantes da Ucrânia, que querem afastar sua produção da mira dos ataques russos.
Oleksandr Yakovenko, fundador da TAF Drones, que fabrica drones FPV disse que a primeira coisa que faz de manhã é checar o celular para saber "se houve algum ataque de mísseis às minhas instalações na Ucrânia".
"Porque, desse jeito, posso ter muitos prejuízos e não conseguir cumprir contratos com o governo, e isso é um grande problema", contou à DW.
Artemm Vyunnyk, cofundador e CEO da fabricante ucraniana de drones Athlon Avia, concorda.
A empresa, que já é dona de um drone de vigilância, o Furia, projetado para reconhecimento aéreo, está desenvolvendo um novo dispositivo de patrulha chamado Silent Thunder. Segundo Vyunnyk, ele poderia ser produzido fora da Ucrânia para proteger sua fabricação.
"Se restringirmos exportações e transferências de tecnologia, em três ou cinco anos vamos descobrir que todas as soluções mais recentes, toda a propriedade intelectual das soluções mais novas, pertencerá a empresas estrangeiras", disse à DW.
O que a Europa quer?
Kiev tem rejeitado repetidamente pedidos de exportação de suas empresas de defesa, preferindo priorizar o uso direto no campo de batalha.
Mas, segundo especialistas, a necessidade de armas mais pesadas, incluindo mísseis de maior alcance, pesou sobre a decisão do governo de flexibilizar as regras. Países europeus têm se recusado a fornecer diretamente essas armas, mas taxas de exportação poderiam gerar recursos para que a Ucrânia desenvolvesse as suas próprias.
O parlamento ucraniano ainda trabalha para desenhar a legislação do projeto "Construa com a Ucrânia". O anúncio de que Kiev vai autorizar a exportação da tecnologia gerou comemoração no setor, que também se questiona sobre como será sua implementação.
Em especial, paira a dúvida sobre quais tecnologias serão incluídas na nova regra, e quais cotas serão aplicadas.
Com a guerra ainda em andamento e a tecnologia mudando tão rapidamente, os fabricantes de drones dizem que é improvável que alguma empresa ucraniana possa produzir imediatamente um lote de drones para outro exército europeu.
Por isso, defendem o estabelecimento de joint ventures que permitam produzir sua tecnologia no exterior, mas inicialmente apenas para uso da Ucrânia. A UE já reservou 150 bilhões de euros (R$ 970 bilhões) em empréstimos para parcerias de defesa envolvendo Ucrânia e países europeus.
Yakovenko, da TAF Drones, diz que já recebe consultas de empresas do Reino Unido, Dinamarca e Nova Zelândia para estabelecer parcerias.
Acordos para produção no exterior
Outro modelo de parceria é avaliado pelo Reino Unido, cujo governo sugere um acordo em que fabricantes ucranianos forneçam dados do campo de batalha para empresas britânicas, que então enviariam seus drones de volta à frente de combate, sem necessidade de estabelecer joint ventures.
Segundo um comunicado do governo, o acordo beneficia tanto a Ucrânia quanto "empregos britânicos".
Esse tipo de acordo responde a duas realidades: que os países europeus estão sob pressão para apoiar suas próprias indústrias de defesa e que a Ucrânia não é um local seguro para produção.
Mas talvez não crie o nível de parceria defendida por fabricantes ucranianos. "Acho que combinar nossa experiência, nosso entendimento das táticas e tendências do campo de batalha com a conexão com empresas estrangeiras, que têm tecnologias e soluções bastante maduras, pode trazer valor para os dois lados", afirmou Vyunnyk, CEO da Athlon Avia.
Experiência no front como diferencial
O que está claro é que a Ucrânia virou o ponto focal de todos os fabricantes de drones europeus, "Você não pode ter uma empresa de drones que não seja testada em combate na Ucrânia", disse Melania Parzonka, do Chatham House, à DW.
Fabricantes ucranianos argumentam que são as empresas do país que, inevitavelmente, terão mais experiência e conhecimento sobre integração no campo de batalha.
Azhnyuk diz que é por isso que está otimista com o futuro do setor. As empresas começarão a crescer quando tiverem capacidade de exportar, diz. Ele acredita que, no futuro, as fabricantes poderão oferecer serviços de drones como uma plataforma completa para países europeus, cuidando não só da fabricação, mas também de treinamento, atualização de software e hardware.
"A situação única da Ucrânia e a vantagem estratégica que temos hoje no mundo é que estamos em guerra com a Rússia há 11 anos", argumenta. Por isso, seria difícil para qualquer país europeu "oferecer esse tipo de serviço no mesmo nível do que as empresas ucranianas podem oferecer."