“A história de um homem acusado injustamente é sempre fascinante, mas também é um tema atual, dado o crescimento do antissemitismo”
Roman Polanski, diretor

O antissemitismo atual tem origem na Europa no século XIX. As maquinações, panfletos difamatórios e insinuações veladas ajudaram a construir a mentalidade nazista, o ódio e a perseguição aos judeus. A França não ficou longe do problema. Mas, felizmente, o berço do iluminismo e das ideias igualitárias também se tornou celeiro de “causes celèbres”, as causas célebres que mobilizam tribunais e a imprensa. Uma das mais rumorosas foi o chamado “L’Affaire Dreyfus”, um processo injusto contra um oficial de origem judaica, o capitão Alfred Dreyus, que, entre 1894 e 1906, revelou o ódio e o preconceito aos judeus no núcleo mais poderoso do exército francês e colocando em xeque a opinião pública.

O caso tem atraído roteiristas e diretores desde o início do cinema, como o curta-metragem de ficção “L’affaire Dreyfus”, de Georges Meliès, de 1899, o primeiro de dezenas de dramatizações do tema no cinema, na televisão e no teatro. Há sete anos,
o cineasta francês e judeu Roman Polanski começou a pensar em levar às telas a sua visão, depois de conversar com o romancista e roterisita inglês Robert Harris, parceiro de Polanski no filme de suspense “O escritor rantasma”, de 2010. Polanski se baseou no romance de Harris para produzir o drama de tribunal “O oficial e o espião” em torno do Caso Dreyfus. O filme foi lançado em 2019, ganhou o Leão de Ouro de Veneza e entra em cartaz no início de março no Brasil.

É o 34º longa-metragem em seis décadas e meia de carreira de Polanski, que, aos 86 anos, ainda é visto como controverso tanto pelos temas fortes quanto por causa dos escândalos que envolveram seu nome na Califórnia nos anos 1960 e 1970, por causa do assassinato de sua mulher, Sharon Tate, em 1969, pela seita satânica de Charles Manson, e pela condenação de estupro de menor em 1978, que o obrigou a sair dos Estados Unidos.

REVOLTA Cena do filme mostra o povo de Paris durante a queima do jornal “Aurore”, que publicou o libelo “J’Accuse!…”, de Émile Zola, denunciando a manipulação de provas pelos militares franceses. (Crédito:Divulgação)

Preocupado com ascensão dos movimentos planetários de extrema-direita, mas também seduzido por uma das histórias de injustiça mais clamorosas da história, Polanski considerou que o tema de seu novo trabalho chamaria atenção ao problema, até porque iria se debruçar sobre um assunto bastante conhecido do grande público. Mas se enganou. “Descobrimos que os jovens não mais conheciam Dreyfus”, afirma. “Então o caso do julgamento injusto serve também como divulgação histórica, além de conscientização. A história de um homem acusado injustamente é sempre fascinante, mas também é um tema atual, dado
o crescimento do antissemitismo.”

A ideia inicial era narrar o episódio do ponto de vista de Dreyfus, mas diretor e roteirista desistiram porque seria algoa quase desprovido de ação, já que o protagonista permaneceu quatro anos em um cárcere na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. “Na verdade, todo os fatos se desenrolam entre redações e tribunais em Paris”, afirma Harris.

“A trama só poderia crescer se fosse ambientada lá.”

Assim, o enredo de “O oficial e o espião” procura se manter fiel aos fatos, partindo do ponto de vista do “espião”, ou seja, o oficial encarregado do departamento de inteligência do exército francês, o tenente-coronel Georges Picquart, interpretado por Jean Dujardin (de “O artista”). É ele que conduz a investigação sobre a veracidade das acusações contra seu aluno na escola militar, o capitão Alfred Dreyfus (Louis Garrel, irreconhecível). Em 1894, Dreyfus é condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo por alta traição à pátria.

A sua degradação diante dos generais dá início ao filme, rodado em locações originais em Paris. Picquart participa da cerimônia e arranca as insígnias do amigo, com convicção e sem deixar de emitir frases de zombaria aos judeus. “Ele chorou como um judeu que vê seu dinheiro jogado ao lixo”, diz rindo a um general. Mas, aos poucos, promovido a chefe da inteligência, descobre que as provas da condeção de Dreyfus foram forjadas e que, por trás de tudo, vigorava o antissemitismo e o entimento de classe dos militares. Dreyfus, natural da cidade industrial de Mulhouse, vinha de uma família burguesa de empresários judeus. A maioria dos oficiais tinha origem aristocrática.

O processo militar corre em sigilo, até que vem a público, em cobertura intensa dos jornais. Os julgamentos são ruidosos e agitam a população a gritar palavras de ordem como “Abaixo os judeus” e “Prisão a Piccuart’. Picquart denuncia a manipulação dos documentos pelos miitares, testemunha contra os seus superiores e é preso. O escritor Émile Zola lança o libelo “J’Accuse!…” (Acuso!) no jornal “L’Aurore”, em janeiro de 1898, divulgando mundialmente o escândalo. A Terceira República entra em convulsão e quase arrasta o país à guerra civil. A absolvição de Dreyfus em 1906, no entanto, não lhe restituem todos os direitos.

O retorno

“Um novo Caso Dreyfus pode voltar a ocorrer, apesar da alta tecnologia e do que aprendemos sobre leis desde o início do século XX”, afirma Polanski “Todos os ingredientes estão aí para acontecer: acusações falsas, péssimos procedimentos nos tribunais, juízes corruptos e, acima de tudo, as redes sociais que indiciam e condenam sem um julgamento justo ou o direito de apelar.”

A fábula exemplar da injustiça ainda emociona, pela atuação do elenco e os detalhes de cenário e figurino que restauram
a atmosfera severa, preconceituosa e hipócrita da Belle Époque.