Terremotos podem ser ainda mais devastadores se a região atingida está em conflito, como é o caso da Síria, em guerra civil há dez anos. O país do Oriente Médio, ao lado da Turquia, somou 11 mil mortos só nos primeiros quatro dias da tragédia, ainda na segunda-feira, 6, depois de dois tremores ocorridos na madrugada (ainda noite de domingo no Brasil). As áreas mais atingidas pelos tremores de magnitude 7,8 e 7,5 foram o sudoeste da Turquia e o noroeste da Síria, mas houve reflexos no Chipre, Líbano e Iraque. Como as pessoas estavam dormindo, as buscas se iniciaram sob expectativa de enorme número de soterrados. Os desabrigados enfrentaram chuva e frio intenso, alojados em barracas improvisadas em meio à neve e à espera de alimentos, água e medicamentos. Há estimativas de que as vítimas fatais (a até 100 quilômetros do epicentro dos abalos) cheguem a oito vezes o número inicial, ou 20 mil, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), com até 23 milhões de pessoas afetadas.

No caso da Turquia, trata-se do maior desastre registrado desde 1939, quando 30 mil pessoas morreram por causa do terremoto de magnitude 7,8 que devastou a cidade de Erzincan, no leste do país. Em 1999, a região de Izmit sofreu com o terremoto que atingiu magnitude de 7,4 e matou 17 mil pessoas. O último abalo no país tinha sido em 2020, com magnitude 6,7 no mar Egeu, causando 19 mortos e 700 feridos.

Além do abalo geológico, outros fatores acentuam a calamidade. As zonas ao sul da Turquia, que são mais remotas e menos desenvolvidas, não eram afetadas por abalos há dois séculos e, portanto, não contavam com construções apropriadas. Os desabrigados podem sofrer hipotermia, já que as temperaturas à noite alcançam até -15°C nas localidades montanhosas.

Do lado sírio, a situação é considerada ainda mais dramática. Como o norte é dominado por rebeldes opositores ao governo de Bashar al-Assad, a ajuda humanitária encontra dificuldades para avançar no território, que sofre há uma década com ataques aéreos e conflitos em terra. O fluxo de apoio da ONU, no único corredor liberado pelo presidente sírio, estava interrompido para alimentos e medicamentos e piorou com a escassez de combustível na Europa. A população já enfrentava tempestades de neve e surtos de cólera antes dos terremotos. Agora, associações sírias de direitos civis pedem pressão sobre o presidente al-Assad para que os bombardeios na área sejam interrompidos.

Dor sem fim: Tragédia na Turquia e na Síria deve afetar a geopolítica do Oriente Médio
RESGATE Sem ajuda humanitária chegando ao norte da Síria, populares retiram garota ferida de escombros na cidade de Jandaris (Crédito:Rami al SAYED / AFP)

Contra o tempo

Vários fatores levaram ao cenário apocalíptico de destruição. O primeiro terremoto, às quatro da manhã pelo horário local, registrou 7,8 de magnitude entre as cidades turcas de Kahramanmaras e Gaziantep. O segundo, de magnitude 7,5, às 13h30, também foi a uma profundidade entre 10 e 24 quilômetros — ambos se mostraram mais devastadores porque próximos da superfície. Seguiram- se 100 tremores com escalas até 5,0 de magnitude, replicados em Ancara, a capital turca, e ainda Chipre, Líbano e Iraque.

A tragédia mobilizou a comunidade internacional. Os Emirados Árabes Unidos foram os primeiros a garantir US$ 100 milhões em assistência humanitária às vítimas, ao mesmo tempo em que a Argélia anunciava participação nas operações de resgate. Na sequência, os EUA anunciaram assistência a vítimas dos dois lados, turcos e sírios, mandando equipes de busca e salvamento, sem passar oficialmente, na Síria, pelo presidente. Também opositor de al-Assad, o Reino Unido avisou que ajudaria por meio da ONU. A União Europeia anunciou o envio de equipes de resgate e cães farejadores, de Bulgária, Croácia, República Tcheca, França, Grécia, Holanda, Polônia e Romênia, e mais 11 países do continente, além de Coreia do Sul e Japão.

Israel, apesar de tecnicamente em guerra com os sírios, também renovou sua disposição histórica de atender pedidos de ajuda. A Rússia, que apoia al-Assad mas também o presidente Recep Tayyip Erdogan, da Turquia (país-membro da OTAN), se dispôs a enviar dois aviões com equipes de apoio. A Ucrânia, em meio à guerra, avisou que mandaria “um grande grupo de resgate”. A agência turca para desastres e emergências contabilizou 3 mil enviados de 65 países.Dor sem fim: Tragédia na Turquia e na Síria deve afetar a geopolítica do Oriente Médio

Sudoeste da Turquia e noroeste da Síria: as regiões mais despreparadas foram mais atingidas

 

Geopolítica

Para Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais da PUC-SP, o cenário de tragédia foi agravado porque ocorreu em países já “em estado de crise”. Por isso, espera-se por grandes impactos geopolíticos. Na Síria, poderá haver desestabilização das zonas rebeldes, as mais atingidas, o que poderia “beneficiar” Bashar al-Assad. O especialista observa que o ditador falou de mobilização da defesa civil e envio de ajuda mencionando apenas cidades do sul, como Aleppo, Latakia e Hama, menos afetadas, omitindo as mais atingidas, em poder dos rebeldes. O destaque, comentou Amaral, “é o que ele não disse”.

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DEVASTAÇÃO Terremoto na madrugada foi ainda mais letal, com epicentro localizado entre Kahramanmaras (na foto) e Gaziantep (Crédito:Adem ALTAN / AFP)

“Ao norte estão as chamadas ‘forças democráticas sírias’, que incluem os curdos, e têm maior apoio internacional, recebendo recursos e armas dos EUA e aliados, por exemplo. Esses opositores de al-Assad querem o controle da região. E que seja reconhecida como autônoma, ao menos, ou até independente”, explica o professor. “Lá também estão grupos rebeldes sírios mais difusos, sem uma liderança central, que controlam cidades e têm por objetivo derrubar o governo.” Rodrigo Amaral explica que analistas de geopolítica estarão atentos a essa situação: se os rebeldes conseguirão resistir à calamidade ou sairão fragilizados, com fortalecimento de al-Assad. “Assim vemos que terremotos também podem reconfigurar forças políticas.”

Com relação à Turquia, o presidente pretendia antecipar eleições para maio. E, mesmo lembrando que a resposta de seu governo ao terremoto de 1999 possa ter sido determinante na ascensão de seu partido, o AKP, Amaral não acredita que desta vez o político possa ser afetado negativamente. “Recep Erdogan comanda um Estado com problemas políticos e sociais [a inflação foi de 60% em janeiro, depois de ter atingido 85%], mas é um Estado controlado, ao contrário da Síria. A peculiaridade é que na região sul, mais atingida, fica o PKK. Trata-se do partido curdo, seu inimigo. Não ocupa um território, mas é oposição e uma pedra no sapato de Erdogan há 30 anos.”

Conexão da Europa com o Oriente Médio, a Turquia contou com ajuda imediata dos países do Golfo — Jordânia, Emirados Árabes, Catar, Kuait, e a líder Arábia Saudita, “associados” ao Ocidente, como destaca Rodrigo Amaral, para quem é novidade a ONU anunciar apoio a um Estado forte, quando normalmente se volta para situações não-pontuais, como no caso do Haiti, onde opera desde 2010.

Guerra

Mesmo a guerra na Ucrânia pode ser afetada, segundo o especialista. Para ele, Zelesnky, que luta a própria guerra, prestou solidariedade mencionando apenas a Turquia, e não a Síria. A Rússia, por seu lado, mobilizou pessoal técnico para ajudar os dois países. “Putin apoia o presidente sírio e a história com Erdogan é curiosa, porque a Turquia — que precisa do dinheiro russo — se coloca como um ‘juiz’ na Europa e nessa guerra. Há séculos, czaristas e otomanos guerreavam. Hoje, vivem alternando abraços com caças abatidos. A situação não se mostra conflitiva, e sim complexa.” Segundo o analista, como Rússia e Turquia são considerados “outsiders” pela Europa, agora podem estar se enxergando de um mesmo lado.

Maiores catástrofes

Pela magnitude 9,5 alcançada em 22 de maio de 1960, o terremoto de Valdívia, no Chile, é o maior da história. Há cálculos de até 6 mil mortos e de dois milhões que teriam perdido suas casas. O abalo, percebido em várias localidades do planeta, foi seguido por um tsunami no Oceano Pacífico, que provocou erupção de vulcões no Havaí e no Japão, e correu o planeta até as Filipinas.

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O MAIS FORTE A cidade chilena de Valdívia, epicentro de terremoto, foi destruída em 1960 (Crédito:AFP)

De magnitude 7,0, o terremoto que atingiu o Haiti em 12 de janeiro de 2010, com epicentro na Península de Tiburón, a 25 quilômetros da capital Port-au-Prince, foi o maior em número de mortos: 316 mil, dentre eles a médica sanitarista brasileira Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança.

Em 11 de março de 2011, um terremoto com magnitude 9,1 ocorreu a 130 quilômetros da costa nordeste do Japão, provocando um tsunami com ondas de até 15 metros e 800 km/h, que arrasou cidades e vilas costeiras e somou perto de 20 mil pessoas mortas ou desaparecidas. A usina nuclear de Fukushima foi atingida, no pior acidente ambiental desde Chernobyl, em 1986.Dor sem fim: Tragédia na Turquia e na Síria deve afetar a geopolítica do Oriente Médio