Primeiro de agosto de 2016. No capítulo da novela global “Velho Chico”, o protagonista Santo, vivido pelo ator Domingos Montagner, é baleado em uma emboscada e cai no rio São Francisco, ferido. Nas águas, ele se debate, volta à superfície e some, levado pela correnteza. Dado como morto por muitos, é encontrado dias depois, vivo, em uma tribo indígena.

DRAMA Em cena de “Velho Chico”, com Camila Pitanga, às margens  do Rio São Francisco
DRAMA Em cena de “Velho Chico”, com Camila Pitanga, às margens do Rio São Francisco

Quinze de setembro de 2016. Montagner e a colega de elenco Camila Pitanga, seu par romântico na trama, aproveitam a tarde de folga das gravações para dar um mergulho em uma área do rio São Francisco chamada Prainha, na cidade de Canindé, em Sergipe. A água tranquila de repente fica agitada e os dois decidem voltar. Camila nada até alcançar uma pedra. Montagner tenta fazer o mesmo, mas a força da água é tanta que ele não consegue mais nadar. A atriz tenta puxar sua mão, mas ele começa a afundar. Volta à superfície uma, duas vezes, e some, levado pela correnteza. É encontrado quatro horas depois, a 50 metros de onde desapareceu, no fundo do rio.

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A comoção nacional com a morte de Domingos Montagner, uma das grandes apostas da Globo, tem relação com essa terrível coincidência, em que a realidade reproduziu a ficção. Além disso, ele defendia o principal papel da mais importante novela da casa. Ninguém estava tão em evidência. Soma-se a isso um talento reconhecido e reverenciado pelos colegas e uma personalidade afável e acessível, bem diferente do universo das celebridades. Montagner nasceu no bairro do Tatuapé, na zona leste de São Paulo, em 1962. Filho de dono de bar, ex-professor de educação física, começou a carreira de ator estudando no Circo Escola Picadeiro, na capital paulista, onde se fez palhaço. Lá, conheceu Fernando Sampaio, com quem fundou em 1997 a La Mínima, aclamada companhia teatral-circense. Pela peça “A Noite dos Palhaços Mudos” levou o prêmio Shell de melhor ator, em 2008. Também fundou o circo Zanni, um dos mais bem-sucedidos entre o que se chama no Brasil de “novo circo”. Estreou na televisão em 2006 no seriado “Mothern”, do canal GNT. Entrou na Globo em 2010, como parte do elenco da série “Força Tarefa”, mas foi como o capitão Herculano, na novela “Cordel Encantado”, em 2011, que despertou a atenção do público. Fez par com a atriz Deborah Bloch, com quem tinha total entrosamento, e apesar de coadjuvante era um dos personagens mais queridos pelos espectadores. O papel de cangaceiro apaixonado lhe rendeu o título de galã. Bons e belos atores, para ele, eram os italianos Marcello Mastroianni e Vittorio Gassman. “São imponentes, bonitões, que souberam adequar o humor a sua figura”, disse em entrevista à revista “Status”, em 2013. Conheceu a fama tardiamente, aos 50, e emendava uma obra na outra. Atuou em 13 programas de TV, entre séries e novelas, e fez nove filmes. Já estava escalado para uma minissérie inspirada no livro “Carcereiros”, de Drauzio Varella, com estreia prevista para 2017.

Ator versátil
Domingos Montagner viveu diferentes papéis na televisão

COLEGAS DE LUTO

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Domingos Montagner mantinha uma rotina familiar distante do circuito das celebridades. Morava em Embu das Artes com a mulher, Luciana Lima, com quem era casado há 15 anos, e os três filhos: Leo, 13 anos, Antônio, 8, e Dante, 5. A família está reclusa. Nos estúdios do Projac, o clima na tarde da quinta-feira 15 era de desalento. Colegas de emissora, atores, diretores e autores lamentavam a perda do amigo. “Eu vou com você pra sempre! Esse, de mim, nunca vai sair! Te amo”, disse Renato Góes, que viveu o personagem Santo na primeira fase da novela. “Dia muito triste, vai em paz meu amigo, obrigado por tudo e pela nossa amizade”, escreveu o diretor Jayme Monjardim. “Foi uma tragédia. O corpo artístico sofre junto. Realmente ninguém consegue trabalhar. Entramos em estado de luto”, afirmou a atriz Vera Holtz. Com as gravações de “Velho Chico” na reta final, Montagner ficaria até domingo 18 em Sergipe. A Globo suspendeu os trabalhos no Nordeste e pediu à equipe que retornasse ao Rio de Janeiro. Autor de “Velho Chico”, Benedito Ruy Barbosa afirmou ao jornal “O Globo” que nunca tinha tomado um choque tão grande na vida. E admitiu que o futuro da trama é incerto. “Ainda não sei o que vamos fazer. Quero homenageá-lo. Temos que pensar na novela, mas a hora agora é de pensar nessa grande pessoa que foi Domingos.”

Ainda na entrevista à revista “Status”, Montagner foi questionado sobre como gostaria de ser lembrado. Pensou durante uma longa pausa para responder: “Como um bom palhaço”. As artes circenses, dizia ele, mudaram sua vida. “No palhaço, um exercício fundamental é se desapegar do ego. Ao pintar o rosto, ironizo a beleza, me volto para o humano”, afirmou. Criativo, dedicado e premiado, tinha grande força expressiva e se entregava aos papéis que lhe eram dados. A comoção do público se deu não apenas pela morte trágica, mas também pela perda de um artista no auge da carreira. Era um defensor do romantismo, da sensibilidade e do afeto. “Sempre lutei pelo amor em todos os planos das relações humanas, afetivas, de amizade ou profissionais”, disse, certa vez. A força emocional que exalava em seus personagens fará o bom palhaço garantir espaço na galeria dos grandes artistas brasileiros.

Fotos: Divulgação; Estevam Avellar; Renato Rocha Miranda


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