Dom Odilo defende modernização da igreja, mas sem romper com tradições

Em entrevista à ISTOÉ, arcebispo de São Paulo afirma que a tecnologia pode ajudar a aproximar fiéis e defende o avanço das discussões sobre o avanço da IA na Santa Sé

Dom Odilo Scherer
Cardeal Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, em entrevista à ISTOÉ Foto: Leonardo Monteiro/ISTOÉ

O arcebispo de São Paulo, cardeal Dom Odilo Scherer, defendeu a atualização da Igreja Católica em meios de comunicação e avanços da tecnologia para atrair fiéis e manter a renovação da entidade. Para o religioso, a Santa Sé está avançando em atualizações, como por exemplo, o uso da inteligência artificial.

Nos últimos anos, a Igreja Católica apresentou um aumento de 1,13% no número de fiéis entre 2022 e 2023, atingindo a marca de 1,4 bilhões de católicos no mundo todo. A maior fatia de crescimento ficou com África, com alta de 3% e na Ásia, com 0,6%, comemorado pelo pouco espaço do catolicismo na região até então.

Teólogos acreditam que esses números foram alavancados pelo legado deixado pelo Papa Francisco, morto em abril deste ano. Durante seus 12 anos de pontificado, Francisco abriu a Igreja para imigrantes e o público LGBTQIAPN+, além de entrar em intermediações de conflitos políticos.

 

Para Dom Odilo, o Papa Leão XIV tem o desafio de manter a atualização da Igreja Católica, mas reforça as tensões provocadas nos bastidores com algumas sugestões que surgem na Santa Sé. O cardeal aponta a tradição de dois mil anos da Igreja e admite a resistência de alguns cardeais às pautas tradicionais.

“A igreja precisa se atualizar? Sim, precisa se atualizar em muitas coisas. No que, porém, ela precisa se atualizar e o que ela pode se atualizar ou não? Precisa se atualizar no uso dos meios de comunicação, precisa e está tentando-se fazer isso e acompanhar, precisa se atualizar nos estudos também da antropologia, da ciência social, precisa e ela faz isso e assim por diante, precisa acompanhar o mundo da política, da economia, precisa e ela o faz, ela está inserida nesse mundo”, afirma Dom Odilo.

“A igreja deve estar sempre se reformando, ou seja, atualizando, adequando e fazendo isso ao longo do tempo. Isso, mais uma vez, não é fácil, porque gera tensões”, completa.

Mas o arcebispo de São Paulo não vê as tensões como negativas no mundo católico. Ele vê o debate com uma alternativa de equilíbrio e ajuda a alavancar a evolução da Santa Sé.

“Atualmente mesmo, e não é de agora, sempre nós vivemos essa tensão entre aqueles que estão abertos a mudanças e aqueles que se aferram simplesmente ao passado e não aceitam mudanças. Vivemos essa tensão, que por si só não é má, quem quer correr muito precisa se segurar um pouquinho, quem não quer andar precisa ser puxado, então essa tensão ajuda a que se mantenha um justo equilíbrio”, reforça.

Uma das atualizações da Igreja Católica é o avanço do uso da inteligência artificial na Santa Sé. Dom Odilo defende intensificar os debates sobre o tema, mas ainda há o impasse de como utilizar a ferramenta, que avança sem limites sobre o dia a dia humano.

“A Igreja, sim, está interessada neste debate, e é claro, na própria questão da inteligência artificial, não se rejeita, não se demoniza a inteligência artificial como coisa ruim, pelo contrário, tem-se um grande respeito e admiração por esse desenvolvimento, e é claro que a Igreja usa e vai usar”.

“Agora, toda a questão está em como se vai usar e para que se vai empregar. E quem terá em mãos, digamos, o mando final de todo este aparato que nós chamamos de inteligência artificial, que está continuando a se desenvolver e não há um limite no desenvolvimento”, reforça.

Mesmo apontando a necessidade de mudanças, Dom Odilo Scherer afirma que as tradições do evangelho serão mantidas, pois não se pode reescrever a bíblia.

“Mas tem outras questões que são questões de princípio que ela não renuncia, não vai renunciar. Mudanças importantes, sim, mas tem mudanças que não podem ser feitas, você não pode reescrever o evangelho, você não pode reescrever os dez mandamentos, você não reescreve os sete sacramentos, você não reescreve a bíblia” aponta Dom Odilo.

Dom Odilo Scherer

Cardeal Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, em entrevista à ISTOÉ

Leia a entrevista completa com Dom Odilo Scherer

Quais são as perspectivas para o pontificado do Papa Leão XIV? Será uma continuidade da linha do Papa Francisco?

Bem, perspectivas para o novo pontificado, eu acho que a gente precisa colocar isso dentro de um quadro mais amplo, isto é, o Papa não é aquele que inventa a Igreja, ele é um servidor da Igreja, e, portanto, as perspectivas, em primeiro lugar, é que o Papa vai cuidar bem da Igreja naquilo que são as questões constantes da vida, da missão da Igreja, e vai ter um olhar especial para questões mais salientes, pontuais, que são questões mais deste momento histórico que a Igreja vive.

Nesse sentido, poderíamos dizer que o Papa Leão XIV vai exercer o seu pontificado voltado justamente para o desempenho da missão que Jesus confiou ao apóstolo Pedro, que é de manter a Igreja unida, de incentivar a missão da Igreja, de proporcionar a todos os fiéis os meios de vivência da fé e, depois, por outro lado, de confirmação na fé. Essa é a missão geral do Papa. Mas existem as questões do momento histórico que a Igreja vive e em relação ao mundo todo também, porque a Igreja não é uma bolha que vive isolada, mas ela se relaciona com o mundo, a sociedade, as situações mais diferenciadas.

Aí sim, tem as questões que estão aí à mesa constantemente, a questão da guerra da paz, a questão dos imigrantes, a questão ecológica ambiental, a questão da justiça social, a questão agora do mundo da internet, da informática e da inteligência artificial. Essas são questões pontuais para as quais certamente o Papa Leão XIV vai ter um olhar especial.

Como o senhor vê o papel da Igreja Católica na mediação de conflitos como Ucrânia-Rússia e Israel-Palestina? O Papa Leão XIV deve intensificar essa atuação diplomática?

Com certeza vai ter. De fato, os pontífices anteriores tiveram uma grande movimentação diplomática e o Papa Francisco também teve uma grande movimentação diplomática, inclusive nessas questões de mediação dos conflitos, de busca da solução dos conflitos e da paz. Eventualmente isso não aparece muito na divulgação, na grande mídia, na grande imprensa, porém há um trabalho diplomático muito grande da Santa Sé, o Papa representa a Igreja, a Santa Sé é a sede da Igreja. E, portanto, há um trabalho diplomático muito grande nesse sentido e que o Papa Leão XIV vai fazer e vai continuar e no seu jeito, na sua perspectiva.

O Papa Francisco tinha um modo, o Leão XIV vai ter um outro modo de fazer essa gestão diplomática de mediação, de busca de solução dos conflitos e assim por diante. Só para dar um fato de como essa gestão diplomática acontece, a Santa Sé, como representação da Igreja Católica, é também representada por um Estado, o Estado do Vaticano e a Santa Sé tem um grande número de representações diplomáticas, que nós chamamos de nunciaturas apostólicas, talvez está entre os países que têm maior número de representação diplomática e os embaixadores da Santa Sé nos diversos países fazem sempre esse trabalho e têm por missão fazer esse trabalho de mediação, de diálogo, de aproximação e tem feito isso. Portanto, é um papel que não é só do Papa enquanto pessoa, mas é da instituição da Santa Sé e, portanto, representando a própria Igreja.

Como a Igreja está lidando com questões como imigração e a comunidade LGBTQIAPN+? Esse movimento de aproximação deve continuar?

Sim, em relação aos imigrantes, não é de hoje que a Igreja tem um olhar muito atento, aliás, faz parte dos seus princípios, no Evangelho nós temos muito claramente a recomendação de Jesus que é preciso acolher quem está sem casa, o migrante ou estrangeiro, e isso tem sido parte, sim, do trabalho, não só da diplomacia, mas do trabalho muito concreto e isso concretamente acontece, não só em alguma parte do mundo, mas no mundo todo, onde tem dioceses, paróquias, organizações de igreja, congregações religiosas, sempre tem trabalho de acolhida e de assistência dos migrantes e em relação à questão das migrações agora, é uma questão, sim, política, econômica, social, antropológica, moral, aí a posição da Santa Sé, através da palavra do Papa Francisco, mas dos papas precedentes também, Papa João Paulo II, Papa Paulo VI, todos tiveram posições muito claras e muito fortes também, muitas vezes contra a corrente, a questão da acolhida dos migrantes que muitas vezes se encontram em situação de rejeição dos seus próprios países ou são perseguidos ou vivem em situações de extrema miséria ou são fugitivos das guerras, refugiados e assim por diante e, portanto, esse trabalho que ultimamente o Papa Francisco fez com muita energia, pedindo com muita força que os países não fechem as fronteiras, mas acolham, claro que os países têm seus critérios e assim por diante, mas não deixem ao relento os prófugos, os migrantes, os refugiados, sem dar-lhes a devida acolhida. Isso, sem dúvida, vai continuar, vai continuar com o Papa Leão XIV também.

Então, é uma questão discutida hoje porque os migrantes muitas vezes, naturalmente, batem à porta e onde muitas vezes não há disponibilidade de acolhida. Porém, as migrações são consequências, muitas vezes, de situações de conflito, situações de miséria, situações de perseguição e, portanto, não se pode fechar as portas simplesmente não reconhecendo a situação de necessidade em que essas pessoas se encontram. Então, isso é certamente polêmico, há governos que não olham com bons olhos os migrantes, que se fecham os migrantes, que levantam muros em vez de abrir as portas.

É uma questão polêmica, porém, é uma questão de princípio que a Igreja Católica vai defender e vai continuar a defender sempre. Isso não nega que os países não possam ter as suas normas internas de acolhida, de triagem, assim por diante, isso certamente que sim. E também, digamos assim, o seu trabalho de investigação, de conhecimento, saber quem são as pessoas que estão vindo, isso é normal que haja.

Porém, simplesmente a rejeição e o fechamento das portas, naturalmente, isso é um problema que desencadeia outros novos problemas. Em relação a outra questão que você põe, a população LGBT, etc. Bem, o Papa Francisco, ele tem tido uma atitude humana e religiosa em relação a essas pessoas de uma compreensão enquanto pessoas humanas.

As pessoas, independentemente da sua convicção, independentemente da sua origem, também da sua escolha de gênero, etc., são pessoas humanas. E, enquanto pessoas, elas precisam ser respeitadas e precisam ser acolhidas. É uma questão que continua e continua aberta, embora a Igreja, enquanto sua moral e seus princípios antropológicos, ali esteja também se questionando sobre essa questão que, nesses últimos anos, últimas décadas, tem crescido muito.

Por isso mesmo, há muitas interrogações ainda a serem respondidas melhor em relação a esta questão. Questões antropológicas, questões mesmo ético-morais e assim por diante. A Igreja tem seus princípios ético-morais e, naturalmente, mantém esses princípios ético-morais, porém, para além disso, toda pessoa deve ser acolhida e respeitada.

Como a Igreja está debatendo o uso da inteligência artificial? Há possibilidade de utilizá-la a favor da instituição?

O que entendemos por Igreja Católica? Não é só o Papa e os cardeais, nem é só o Papa e os cardeais, os bispos e o clero, as religiosas e os religiosos. É todo o povo de Deus, é todos os batizados, todos os membros da Igreja são Igreja.

Então, assim, compreendendo a Igreja, nós entendemos que a questão da inteligência artificial é debatida quer nos ambientes de reunião da hierarquia da Igreja, os bispos, o Papa, o bispo com o seu clero, como nos ambientes mais variados internos da vida da Igreja. Então, nos ambientes, por exemplo, da vida das paróquias, mas também das universidades, das faculdades, dos centros culturais, das organizações mais variadas dentro da Igreja, essas questões, organizações científicas, centros de pesquisa, a Igreja está presente nessa discussão, não como um mundo à parte, mas ela está dentro dessa discussão, dentro do mundo, fazendo parte dessa discussão. E tem grande interesse nisso, porque é uma novidade, de um lado, uma novidade maravilhosa do desenvolvimento científico tecnológico, que, porém, levanta também questionamentos, levanta questionamentos, e não é só no ambiente da Igreja, mas no ambiente científico também, no ambiente político, no ambiente filosófico, e assim por diante, em geral.

A Igreja, sim, está interessada neste debate, e é claro, na própria questão da inteligência artificial, não se rejeita, não se demoniza a inteligência artificial como coisa ruim, pelo contrário, tem-se um grande respeito e admiração por esse desenvolvimento, e é claro que a Igreja usa e vai usar. Agora, toda a questão está em como se vai usar e para que se vai empregar. E quem terá em mãos, digamos, o mando final de todo este aparato que nós chamamos de inteligência artificial, que está continuando a se desenvolver e não há um limite no desenvolvimento da inteligência artificial.

Porém, as perspectivas desse desenvolvimento geram necessariamente interrogações sobre o uso da inteligência artificial, sobre os limites do emprego da inteligência artificial, e depois sobre o próprio homem, porque existe aí uma questão antropológica que, finalmente, vai acabar se colocando como já se está colocando. Afinal, quem somos nós? O que faço com a minha inteligência humana?

E, enfim, se a inteligência artificial, de repente, se torna mais eficiente do que a minha inteligência feita de neurônios e memórias, quem sou eu? A máquina, enfim, se torna mais importante do que o ser humano? A máquina vai mandar no ser humano?

Se manda num ser humano, pode mandar na sociedade toda, na humanidade toda. Como é que vai acontecer isso? Então, o maravilhoso desenvolvimento tecnológico necessita, naturalmente, de uma reflexão de parâmetros éticos no seu desempenho, no seu uso.

O que tem acontecido sempre ao longo do desenvolvimento científico e tecnológico? A mesma coisa com o advento da aviação. Para que vai empregar esse instrumento maravilhoso que se chama avião?

Para que vai empregar esse meio maravilhoso que se chama energia nuclear? E outras tantas coisas maravilhosas que foram sendo criadas, descobertas e desenvolvidas. Mas, afinal, no mando de quem isso vai estar?

É um mando compartilhado, democrático, responsável? Ou isso vai estar na mão de alguém que pode estar usando aquilo em detrimento do bem comum, do bem da própria humanidade?

Como a Igreja se posiciona diante da polarização política global, especialmente em relação a figuras como Donald Trump?

Bem, não acontece só nos Estados Unidos, acontece em toda parte. Porque a questão da polarização ideológico-política, ela é global. E depois entrou também na Igreja, porque a Igreja, mais uma vez digo, não é uma bolha que vive à parte. A Igreja é formada de pessoas que vivem a cultura, a sociedade, a política, são cidadãos de um país, etc. De modo que é quase praticamente inevitável que aquilo que se passa na sociedade também tenha sua repercussão dentro da comunidade da Igreja.

Porém, há uma diferença entre aquilo que é a movimentação geral, digamos, movimentação cultural, de uma tendência ideológica, uma tendência política, e a Igreja. A Igreja, agora vamos falar em questão de instituição representativa, a Santa Sé. A Igreja não tem uma escolha ideológica e nem partidária.

A Igreja tem princípios. Tem princípios que ela segue e divulga. E nesses princípios, ela tem a base das suas posturas e posições, quer num ambiente, quer em outro ambiente.

Então, não é camaleão que se adequa às situações, não. A Igreja vive os seus princípios e muitas vezes paga caro preço por esses princípios que ela vive. Os princípios da própria fé, da sua moral, os princípios antropológicos, a sua visão de sociedade, naturalmente que decorre da visão que a Igreja tem sobre a pessoa humana.

E, portanto, o caro preço que muitas vezes paga é justamente a perseguição, é a marginalização, é até o martírio, em quantos lugares, o martírio de tantas pessoas por causa dessas questões de princípios, que são os princípios da sua fé e da sua vida interna. Então, não é que a Igreja dribla, a Igreja procura ser ponte. Procura ser uma ponte de aproximação, de diálogo, de discernimento nessas situações.

Primeiramente para a sua vida interna, para o seu, digamos assim, público interno, que são as pessoas que fazem parte das comunidades da Igreja. E, por outro lado, também a mediação no âmbito político, no âmbito internacional, assim por diante. Como dizia o Papa Francisco e Papa Leão, não vai fazer diferentemente, a Igreja tem as portas abertas ao diálogo com todos. A Igreja está sempre aberta ao diálogo, a ouvir, a falar, a ajudar a se aproximar e superar as questões.

O que explica o crescimento de católicos na Ásia e África? Como manter esse crescimento?

A Igreja Católica, nesses últimos tempos, vem crescendo não só na Ásia, também na África tem um crescimento expressivo. Na Ásia, o crescimento aparece mais porque o número é menor da presença da Igreja Católica no conjunto da Ásia. E quando esse número dobra, percentualmente aparece, mas em números absolutos ainda não foi tanto.

Porém, sem dúvida, há um crescimento da Igreja na África e na Ásia. E na Ásia, nesses últimos tempos, sim. É que na Ásia cresceram as áreas de missão, de presença missionária.

Por outro lado, houve transformações políticas na Ásia, onde se abriram mais as portas, ou seja, se diminuíram as perseguições religiosas. Por exemplo, países como o Vietnã, Camboja, onde havia até pouco tempo atrás uma total repressão à liberdade religiosa, sobretudo a presença cristã, hoje estão muito mais abertos, embora ainda tenha restrições. Assim, em alguns outros países.

E, portanto, existe ali, sim, um crescimento expressivo, local, também da presença e da adesão à Igreja Católica. Mas, devo dizer isso depois de muito suor e sangue, porque ali também foram países que, durante os regimes autoritários ali, reprimiram muito os católicos, os cristãos em geral, e com muitos mártires. Muitos mártires.

E como nós temos um ditado na Igreja que já vem dos primeiros séculos, de um teólogo lá, acho que é do segundo ou terceiro século, chamado Tertuliano. Ele dizia que o sangue dos mártires é semente de novos cristãos. E ele viveu num tempo de muita perseguição dos imperadores romanos contra os cristãos.

Este ditado se confirma ao longo dos tempos, onde a Igreja foi reprimida, perseguida, depois, quando entra em tempos de maior liberdade, há um grande número de conversões, de adesões à Igreja. E isso está acontecendo em vários países também da Ásia e da África. Na África também houve situações de perseguição e onde há um grande crescimento da presença da Igreja.

Dom Odilo Scherer

Cardeal Dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, em entrevista à ISTOÉ

E aqui no Brasil a gente também tem essa instabilidade no número de católicos no país. O que se deve a essa instabilidade? O senhor acredita que há um trabalho da Igreja para aumentar esse número de fiéis? E como tem sido esse trabalho?

Bem, o nosso trabalho, primeiramente, não é para aumentar o número de fiéis. Nós temos que fazer o nosso trabalho. A gente tem que cumprir o próprio dever.

E a Igreja existe para anunciar o Evangelho, para testemunhar o Evangelho, a presença dos valores cristãos do mundo, e procurar permear, por isso mesmo, com os valores do Evangelho, também a vida, a sociedade, a cultura. Esse é o nosso dever como Igreja. Agora, as adesões, o aumento dos fiéis, isto virá como consequência.

Mas o objetivo primeiro do trabalho da Igreja não é simplesmente aumentar o número de fiéis. Às vezes, você tem esse modo equivocado de se ver. O trabalho missionário da Igreja não é simplesmente conquistar fiéis. É anunciar o Evangelho. É procurar justamente fazer o nosso dever, a nossa missão.

Aqui no Brasil, evidentemente, nós estamos tentando fazer da melhor forma a nossa missão. Agora, é claro que a situação concreta, real, nos põe algumas interrogações. Nós tivemos uma mobilidade religiosa muito grande no Brasil nas últimas décadas. E nos interrogamos por que isso acontece.

O que está faltando no nosso trabalho? O que poderíamos ou deveríamos fazer melhor ou fazer diferente? Isso nos leva a perguntar.

E, evidentemente, continuamos a buscar os modos melhores de ir ao encontro das pessoas, de fazer o nosso trabalho e oferecer aquilo que nós temos a oferecer para as pessoas enquanto presença religiosa, assistência religiosa. O último censo de 2022 revelou algumas novidades na mobilidade religiosa no Brasil.

Católicos diminuiu menos do que se previa a partir do censo de 2010 e o número de evangélicos também cresceu menos do que se previa a partir do censo de 2010. Cresceram, porém, algumas outras expressões religiosas, cresceram percentualmente até bastante, por exemplo, os que aderem aos cultos de origem africana, os espíritas, não de modo generalizado, mas em algumas regiões do Brasil, cresceram aqueles que não aderem a nenhuma instituição religiosa, com isso não se dizendo que não são crentes, mas não aderem a nenhuma expressão religiosa institucionalizada.

E, da parte da Igreja Católica, também algum fenômeno em algumas regiões, sobretudo, o relativo envelhecimento dos católicos e, portanto, são algumas questões do último censo que nos fazem pensar, refletir, analisar e, naturalmente, que nos vão fazer também rever ou reorientar algumas das nossas atividades, nossos modos de trabalho para atender melhor a esses públicos.

Por que os evangélicos crescem enquanto os católicos diminuem no Brasil? Como mudar esse cenário?

É uma boa pergunta e se a gente tivesse a resposta prontinha, a gente já saberia também o que fazer. Não é fácil, o fenômeno religioso é muito complexo e responde a muitas vertentes, digamos assim, muitas vezes insondáveis, digamos assim. São as questões de consciência, de liberdade, são as questões de situação, são as questões de oportunidade e assim por diante.

Mas, antes de tudo, uma pontuação, o Brasil na contramão em relação à África e Ásia pode ser, mas o Brasil está na mesma direção do que acontece na Europa, do que acontece na América do Norte, sobretudo no Canadá, está na mesma direção do que acontece com os nossos vizinhos mais perto aqui, Uruguai, Argentina. Então, é um fenômeno cultural que não é indiferente no que se refere à questão religiosa. E o que precisa fazer para responder a sua pergunta, bem, primeiramente precisa compreender o fenômeno, sem pânico, sem desespero.

Segundo, o fenômeno religioso enquanto tal, quando se fala em igreja católica e igrejas evangélicas ou igreja evangélica, são conceitos um pouco dispares, igreja católica é uma, igreja evangélica não existe, existem igrejas, plural, muitas, mais de mil.

Entre as comunidades e igrejas evangélicas existe uma mobilidade interna muito grande, de uma para a outra, muito maior do que da igreja católica para a evangélica, tanto assim que certas comunidades evangélicas até desaparecem, porque os seus membros migram para outras, né. Então é um fenômeno que não diz respeito apenas à igreja católica, é um fenômeno religioso da migração, migração religiosa, que responde a um momento do estado de cultura que nós vivemos. Primeiro, a questão da liberdade, da autonomia.

Hoje as pessoas se sentem muito mais livres para suas opções religiosas do que no passado. Pelo simples fato também, porque existe um leque enorme de opções religiosas que no passado não existiam. E opções religiosas com as mais diferentes ofertas, né, digamos, discursos, propostas religiosas.

Segundo, também as pessoas socialmente se sentem mais autônomas e esse é um fenômeno humano, um fenômeno cultural que se chama justamente a afirmação da subjetividade. E uma das coisas interessantes que nas pesquisas religiosas aparece é que as pessoas não querem muito se ligar a instituições, sobretudo em instituições pesadas, que tem uma história, que tem uma estruturação, como é a igreja católica, e que tem um peso, portanto, também de estruturação, de doutrina, de princípios, de organização, de estrutura interna. Então muitas vezes as pessoas, para afirmar a sua liberdade, não aderem ou escapam desse tipo de organizações e aderem mais facilmente a organizações leves, jovens, que não têm uma proposta muito pesada, definida, etc.

Então é a afirmação da autonomia, afirmação da autonomia individual, que é um fenômeno universal. Cada um quer fazer suas escolhas e não quer que ninguém meta o dedo em suas escolhas. Acontece também no fato religioso.

Por outro lado, é claro, do que se refere a igreja católica, o que nós precisamos fazer e tentamos fazer, mais uma vez, é justamente rever onde estamos eventualmente falhando e nós temos claramente percepção de onde nós temos falhas, mas não é fácil. Eu imagino, eu falei da igreja católica, mas tem uma organização histórica, tem dois mil anos, tem uma história e tudo mais. Eu comparo às vezes a igreja católica a um enorme transatlântico estacionado no porto.

Para mudar de direção e pegar o largo, a movimentação do transatlântico é bagarosa, cuidadosa, tem que pegar o largo e depois vai embora, ninguém segura. Então muitas vezes acontece assim, as mudanças na igreja católica não são rápidas, não são fáceis, porque ela também tem princípios aos quais se atém. Os princípios permanecem, mas tem que mudar os comportamentos, tem que mudar as atitudes.

E por isso entre nós se tornou muito forte um conceito que vem sendo repetido nessas últimas décadas, inclusive este Papa já tornou a falar, a questão da conversão, isto é, mudança de atitude, mudança de atitude da parte da instituição, da parte das pessoas, de quem está nas organizações, para que possamos melhor responder às necessidades do momento.

A Igreja Católica precisa se atualizar? Até que ponto é possível conciliar tradição e modernidade?

Nós temos um princípio, mais um princípio que se consolidou ao longo do tempo, Ecclesia semper reformanda, ou seja, a igreja deve estar sempre se reformando, ou seja, atualizando, adequando e fazendo isso ao longo do tempo. Isso, mais uma vez, não é fácil, porque gera tensões. Que mudanças?

Mudanças importantes, sim, mas tem mudanças que não podem ser feitas, você não pode reescrever o evangelho, você não pode reescrever os dez mandamentos, você não reescreve os sete sacramentos, você não escreve a bíblia. Então, o que mudar e em que medida mudar? E dentro da própria igreja acabam se gerando tensões, discussões, até que se consiga perceber podemos mudar, sim, em que medida, onde e como?

Atualmente mesmo, e não é de agora, sempre nós vivemos essa tensão entre aqueles que estão abertos a mudanças e aqueles que se aferram simplesmente ao passado e não aceitam mudanças. Vivemos essa tensão, que por si só não é má, quem quer correr muito precisa se segurar um pouquinho, quem não quer andar precisa ser puxado, então essa tensão ajuda a que se mantenha um justo equilíbrio.

É possível rever a interpretação de alguns textos bíblicos sem alterar seus princípios fundamentais?

Sim, a bíblia é o livro mais estudado do mundo. Não, existe a liberdade do estudo, de pesquisa para compreender melhor o texto, a sua origem, o significado originário daquilo que foi dito, que está escrito e assim por diante, procura-se ver como isso tem sido interpretado ao longo da história, então o estudo bíblico ele é sério, é levado muito, muito a sério e é claro que ao longo do tempo, em relação a certos textos, pode haver interpretações novas, que revejam ou que modifiquem certa compreensão dos textos, sim, mas a bíblia enquanto tal não se reescreve, é claro que não. Bem, depende do que a igreja precisa se atualizar, sim, precisa se atualizar em muitas coisas, no que, porém, ela precisa se atualizar e o que ela pode se atualizar ou não, precisa se atualizar no uso dos meios de comunicação, precisa e está tentando-se fazer isso e acompanhar, precisa se atualizar nos estudos também da antropologia, da ciência social, precisa e ela faz isso e assim por diante, precisa acompanhar o mundo da política, da economia, precisa e ela o faz, ela está inserida nesse mundo, bem, mas tem outras questões que são questões de princípio que ela não renuncia, não vai renunciar.