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Uma das características mais perniciosas da política brasileira é a deliberada confusão dos governantes entre o público e o privado. E se tem um partido político pródigo nesta cambulhada é o PT. Após um requerimento que partiu do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), o Tribunal de Contas da União passou três meses fazendo uma auditoria para verificar o desvio e o desaparecimento de bens pertencentes à União nos Palácios do Planalto e da Alvorada durante os governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidente afastada, Dilma Rousseff. A apuração, realizada entre 15 de abril e 15 de julho deste ano, também averiguou como vem sendo realizada a gestão dos presentes recebidos pelos dois chefes do Estado no exercício do cargo. A situação encontrada pelo órgão de controle, nos dois casos, foi alarmante: 716 presentes recebidos oficialmente por Lula e Dilma simplesmente deixaram de ser registrados como patrimônio da União. E 4.564 itens sumiram do espólio nacional.

REGALO Presente (à direita) foi ofertado a Lula pelo sultão Bin Zayed, dos Emirados Árabes
REGALO Presente (à direita) foi ofertado a Lula pelo sultão Bin Zayed, dos Emirados Árabes

A ISTOÉ teve acesso com exclusividade ao documento sigiloso preparado pelo Tribunal de Contas, no qual são apontadas dezenas de falhas entre 2003 e 2016. No texto, o TCU detalha que dos 731 regalos registrados neste período e destinados aos presidentes petistas, apenas 15 itens foram incorporados ao patrimônio público. Desse total, 568 mimos foram endereçados ao então presidente Lula, mas apenas nove deles tiveram o acervo público como destino, ou 1,58%. Outros 163 foram encaminhados aos cuidados de Dilma, porém somente seis viraram bens da União. Os auditores que assinam o relatório ficaram impressionados: “Esse número é irrisório frente ao total de bens recebidos pelos presidentes de janeiro de 2003 a maio de 2016, em decorrência das audiências promovidas nas visitas oficiais ou viagens de estado, no exterior ou no Brasil”. Não fazem parte desse montante cerca de mil outros itens, que foram identificados como de natureza museológica, de cunho pessoal (como grã-colar, medalhas personalizadas) e os considerados de consumo direto do presenteado, como boné, camiseta, gravata, chinelo, perfume, etc. A minuta do órgão de controle conclui: “Não há como garantir que os acervos presumidamente privados de 568 bens, pertencente ao ex-presidente Lula, e o acervo de 163 bens, registrados como de propriedade da presidente Dilma, tenham sido corretamente classificados”. Em outras palavras, o acervo que deveria ser patrimônio da União pode ter sido catalogado como de propriedade pessoal dos dois governantes.

A reportagem teve acesso à lista dos 15 artigos incorporados ao patrimônio – o que dá uma ideia do tipo de lembrança que os mandatários do Brasil recebem nessas cerimônias com autoridades estrangeiras. Entre eles, duas taças de prata folheadas a ouro 18 quilates, entregues a Lula em 2007. Em 2016, Dilma recebeu uma peça em bronze chamada “Solidariedade e Paz”, com a figura de um anjo em atitude mística, obra de autoria do artista plástico italiano Guido Veroi.

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O cenário de presentes “perdidos” pode ser ainda pior dada à bagunça no registro desses itens. O documento do tribunal classifica como “frágil” e “não confiável” a classificação feita pela Diretoria de Documentação Histórica da Presidência (DDH/PR). O órgão responsável pela gestão desses presentes informou ao Tribunal de Contas que na triagem de cada peça, quando constatado tratar-se de artigos recebidos em cerimônia de troca de presentes, ele recebe um registro, uma plaquinha numerada e, depois disso, o item é disponibilizado para exposição em ambiente público. De acordo com o decreto 4.344/2002, não são considerados de propriedade pessoal do presidente da República os presentes recebidos em situações caracterizadas oficialmente como “cerimônia de troca de presentes”. O texto é claro ao determinar que, nessas ocasiões, os presentes devem passar a figurar imediatamente como propriedade da União.

Cruzando dados do cerimonial, fotos dos eventos e as informações prestadas pelo órgão de gestão do acervo, o Tribunal de Contas descobriu que houve ao menos cinco encontros entre os presidentes brasileiros e chefes de países estrangeiros com cerimônia oficial de troca de presentes, sem que esses bens tenham sido incorporados ao patrimônio, em flagrante desacordo com a lei. Em 2014, Dilma visitou a China, foi presenteada, mas o objeto sequer foi registrado. É como se nunca tivesse existido. Ao receber o presidente da França, François Hollande, Dilma ganhou um vaso de porcelana francesa, que também não foi para o espólio nacional. Ninguém sabe onde foi parar. Ao TCU, os órgãos como DDH, Ajudância-de-Ordem e Cerimonial protagonizam o famoso jogo de empurra de responsabilidades mas, em resumo, todos atestam que o sistema sempre foi uma esculhambação.

Entretanto, mesmo para troca de presentes que não acontecem estritamente nessas cerimônias oficiais, o TCU entende que o governante, regido pela “moralidade e razoabilidade”, deveria dar igual destino aos objetos, já que o chefe de Estado só está recebendo os artigos em função de cargo de natureza pública e representativa. O TCU argumenta ainda que “os presentes ofertados pelo presidente da República (brasileiro) aos chefes estrangeiros são adquiridos com recursos públicos da União. Logo, os presentes que ele receba em troca deveriam ser revertidos ao patrimônio”.

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BENS EXTRAVIADOS
A auditoria do TCU também fez uma devassa sobre a situação dos bens patrimoniais vinculados à Presidência – denominação que engloba desde uma obra de arte até um grampeador – e descobriu que dos 125.742 itens ativos em junho deste ano, 4.564 estão sob o registro de extraviado. De 2008 para cá, o pico aconteceu em 2013, quando desapareceram 1.761 bens. Dos 45 setores de onde as peças se escafederam, o campeão em número absoluto foi o depósito, por ser o que guarda o maior número de bens. Em segundo lugar, figurou o Palácio da Alvorada, a residência oficial da presidente.

Quando comunicados, os extravios se transformam em processo administrativo para apurar as responsabilidades, que costumam se arrastar por anos. O TCU detectou “limitações e deficiências” em todo o sistema eletrônico, chamado Automation System of Inventory, de propriedade da LinkData Informática e Serviços/A. Atualmente, o controle dos bens vinculados à Presidência da República é feito pela Coordenação de Patrimônio e Suprimento. Apenas dezessete servidores têm sob suas responsabilidades cerca de 126 mil itens distribuídos pelas 92 unidades administrativas vinculadas à Presidência. De acordo com a assessoria do TCU, a responsabilização pode culminar no pagamento de multas e inabilitação por exercício em função de confiança ou cargo em comissão na administração pública federal por de cinco anos. Mas isso tudo sobrará para os servidores. Segundo o TCU, nem Dilma nem Lula devem ser responsabilizados.


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