Dizer que Sergio Leone é filho do cinema não é uma simples figura de linguagem. Seu pai, o diretor Roberto Riberti, e sua mãe, a atriz Bice Valerian, eram estrelas das telas na Europa no início do século 20. Nada mais natural, portanto, reconhecer que a infância de Leone em meio aos sets de filmagem o acompanharia ao longo de toda a sua carreira e seria uma parte crucial de seu trabalho. “Ele sempre foi uma criança. Um garoto que gostava de brincar de caubói e de divertir os amigos, de forma despretensiosa e sempre com generosidade”, definiu Steven Spielberg em seu depoimento para o documentário O Italiano que Inventou a América, de Francesco Zippel.

Leone levou as memórias de criança às telas até mesmo quando suas produções eram marcadas por duelos ou pela violência dos personagens.

Nascido em Trastevere, bairro boêmio de Roma, cresceu vibrando com os sucessos de Hollywood dos anos 1930, clássicos de John Ford e Howard Hawks que lhe inspiravam uma imagem heróica da América.

Logo veio a decepção: os americanos que ele via nas telas eram bem diferentes dos soldados que desembarcaram na Itália após a derrota italiana na Segunda Guerra. Vendiam cigarros contrabandeados, tratavam mal as mulheres, metiam-se em brigas — papéis bem diferentes dos mocinhos que o fascinavam no escuro das salas de cinema.

Nessa época, Leone frequentava as sessões com um amigo que se tornaria o complemento perfeito do seu talento: Ennio Morricone, autor de todas as suas trilhas sonoras e criador de melodias inesquecíveis como os assobios da introdução de Por um Punhado de Dólares, sons que tornaram os filmes do colega ainda mais únicos.

Sergio Leone: decepção com os mocinhos das telas após conviver com soldados americanos (Crédito: Ladd Company)

Desiludido com a perseguição que o pai sofreu durante os anos de Benito Mussolini ­— ele era um antifascista ferrenho —, Leone decidiu seguir os passos familiares. Entre 1949 e 1959, trabalhou como assistente em quase 40 produções, entre elas Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica, e Ben-Hur, filmado no estúdio Cinecittà, em Roma. Em sua primeira direção solo, arriscou-se no épico O Colosso de Rodes, em 1961. Queria lucrar para investir no seu sonho: reinventar o faroeste, o mais americano dos estilos cinematográficos.

Por um Punhado de Dólares catapultou Clint Eastwood ao estrelato e inaugurou a era do “spaghetti western” — “bangue-bangue à italiana”, como foi batizado no Brasil.

O enredo era original: combinava os faroestes tradicionais com Yojimbo, história de samurais de Akira Kurosawa. Com seu ponche marrom, chapéu cobrindo os olhos e cigarro pendurado na boca, o “homem sem nome” inaugurou a trilogia que teria ainda Por uns Dólares a Mais e Três Homens em Conflito. Curiosidade: Leone não falava inglês e Eastwood não falava italiano. Os dois se comunicavam por gestos, com poucas palavras, como o caubói durão que conquistou o público. Filmado na Itália com areia vermelha importada do Arizona, teve de ser dublado em inglês antes de estrear nos EUA.

Foi a prévia para sua obra-prima, Era uma Vez no Oeste, de 1968, estrelado por Henry Fonda, Charles Bronson e Claudia Cardinale. Quem recusaria a direção de O Poderoso Chefão? Leone entregou o projeto a Francis Ford Coppola porque tinha outra ideia em mente.

Era uma Vez na América, com Robert De Niro e James Woods, foi seu último filme e ficou marcado como a herança visual de suas memórias.

“Para mim, o cinema é um espetáculo grandioso onde se reproduzem, mascarados, os eventos da vida. É um veículo para narrar experiências pessoais, históricas e psicológicas, sempre por meio da fábula e do mito. Para mim, o cinema é vida e vice-versa” , disse o cineasta que nunca deixou de ser criança.

Era uma Vez na América: clássico sobre a vida da comunidade italiana nos EUA (Crédito:Ladd Company)

Francesco Zippel, Diretor
“Todos queriam compartilhar o amor por seu trabalho”

Como foi possível reunir tantos nomes de peso em Hollywood para esse documentário?
Meu plano era reunir antigos colaboradores de Leone, mas também profissionais que o citavam como influência. Foi assim que cheguei em Martin Scorsese, Steven Spielberg, Quentin Tarantino e Robert De Niro. A verdade é que o nome dele abriu as portas. Todos queriam compartilhar o amor, respeito e gratidão por seu trabalho.

Como surgiu a ideia do filme?
A filha de Leone, Rafaella, viu meu documentário sobre o diretor William Friedkin e me apresentou o projeto. Comecei as entrevistas em 2019 e levamos quatro anos para finalizá-lo.

A parceria de Leone com Ennio Morricone foi única. Qual a importância da música para a sua obra?
A música e os sons eram uma parte essencial de seus roteiros. Leone e Morricone realizaram uma revolução nas trilhas sonoras. Um era os olhos, o outro, os ouvidos. Tinham a comunicação instintiva, uma parceria mágica.

Francesco Zippel: “Tarantino foi quem mais incorporou estilo de Leone” (Crédito:Divulgação)

Como os filmes de Leone seriam vistos hoje? Eram filmes com poucas participações femininas.
Era outra época. Acho que ele seria inteligente o suficiente para se adaptar. Atuações como a de Claudia Cardinale em Três Homens em Conflito e a de Elizabeth McGovern em Era uma Vez na América mostram que ele sabia respeitar os personagens femininos fortes.

Quem seria o herdeiro do diretor?
Como um dos maiores inovadores do cinema, ele deixou um manual que permite a qualquer um aprender muito. Entre os atuais, Tarantino foi quem mais incorporou seu estilo. Spielberg foi influenciado por suas narrativas e fábulas. Scorsese o homenageou em O Irlandês e Bons Companheiros.

Como está o cinema italiano hoje?
Vivemos um momento de renovação, diferente dos tempos de Leone, Fellini, De Sica, Rossellini, Visconti. Entre os nomes da nova geração estão Paolo Sorrentino e Matteo Garrone, que são muito talentosos.