Apaixonado por arquitetura – dirigiu um dos episódios do documentário Catedrais da Cultura, e o dele era sobre o Beaubourg, em Paris -, Karim Aïnouz usa definições como “ironia” e “curto-circuito da história” para expressar a singularidade de seu novo longa, que terá sua estreia mundial neste sábado, 17, no Festival de Berlim.

Aeroporto Central passa na seção Panorama Dokumente. Dividindo-se entre duas casas, em Fortaleza (onde nasceu) e Berlim (onde vive), Aïnouz fez o filme em circunstâncias muito especiais. “Berlim tem três grandes aeroportos, e o Tempelhoff está abandonado. Fica perto de minha casa. Sua pista virou um enorme parque, que abriga hortas comunitárias.”

Há quatro anos, quando apresentou Praia do Futuro na competição da Berlinale, Aïnouz havia levado o repórter por um tour pelas locações do longa com Wagner Moura e Jesuíta Barbosa. Mostrou o parque em fevereiro, no inverno – desolado, coberto de neve. No verão, como aparece no filme, é outra coisa. “O prédio de Tempelhoff, esse hangar gigantesco, era a menina dos olhos de (Adolf) Hitler. Integrava o projeto Germania, da construção da cidade do futuro, que seria a sede do império dos 1.000 anos. Durante a 2.ª Guerra, foi oficina de manutenção de aeronaves e a ironia disso tudo é que Tempelhoff terminou virando a sede de outra coisa. Há dois anos, o governo alemão transformou o imenso hangar num abrigo para refugiados. Fugindo de guerras como a da Síria, eles buscavam um lugar seguro na Alemanha.”

Aïnouz perdeu a mãe há dois anos. Passou por um período de recolhimento, pensando em suas origens, suas raízes – mãe brasileira, radicada em Fortaleza, pai argelino, com o qual morou em Paris. O parque era ali do lado, e havia o hangar cheio de gente. Aïnouz começou a ir regularmente a Tempelhoff. Achava que era preciso documentar aquilo, mas sentia a recusa dos próprios refugiados. Com as câmeras de TV ligadas, eles se retraíam, todo o ambiente mudava. Eram pessoas tímidas, sofridas. Ele sentia uma espécie de pudor. Durante meio ano, Aïnouz frequentou o local, sem câmera.

Conversando, ouvindo histórias, contando a dele. “Quando fui morar na França, com meu pai, ninguém aceitava, com esse nome, que eu fosse brasileiro. Era só mais um do Magreb, como todos os demais. Sentia o preconceito. A consequência do terror é que demonizou os islâmicos no Ocidente. E aí você conhece as pessoas, e sente que é preciso resgatar, aos olhos dos outros, a sua humanidade.”

É o primeiro documentário que Aïnouz assina sozinho. Ele já fez filmes ensaísticos como Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, em parceria com Marcelo Gomes. “É muito diferente, porque, em primeiro lugar, aquelas pessoas que ali estavam, amanhã poderiam não estar mais. Os pedidos de asilo podiam demorar meses, ou a pessoa ser deportada imediatamente.” Mas ele escolheu seu protagonista – um jovem sírio de 18 anos, Ibrahim Al-Hussein. Por que ele? “Deve ser a influência do diretor de ficção. Você escolhe o ator mais adequado para o papel. No caso, eu também senti que teria de ser ele. E o que me atraiu talvez nem tenha sido a loquacidade do Ibrahim, mas os silêncios dele, que me pareciam que falavam muito.”

Quando chegou a Tempelhoff, a primeira coisa que bateu forte em Ibrahim foi aquele avião estacionado na pista. Ele não sabia que se trata de um velho avião que ali está como relíquia. “Pensou que seria deportado. Sofreu um choque.” Não se trata de spoiler, mas Ibrahim, afinal, ficou na Alemanha. Trabalha num cinema. Vai tirar folga neste sábado para assistir à estreia de seu filme num dos maiores festivais do mundo. E Aïnouz? “Como eu disse, foi uma experiência nova para mim, e foi muito estimulante. Sair da zona do conforto, encarar novos desafios.”

Aeroporto Central já tem distribuição na Alemanha e, no País, o Canal Brasil participa da produção, o que significa que, em algum momento, depois dos cinemas – e dos festivais, tipo o do Rio e a Mostra de São Paulo -, você poderá vê-lo no canal brasileiro da TV paga. Aïnouz é (re)conhecido por suas abordagens do universo feminino, mas volta e meia faz filmes sobre homens. “Cada lugar de fala tem a sua especificidade. Como homem, é natural, para mim, retratar o masculino. Mas fui criado num meio muito particular. Uma estrutura matriarcal. Minha mãe, minha tia. Imagine isso no Nordeste, há 50 anos. Aprendi a conviver com mulheres, a observar, senão compartilhar, suas ansiedades, seus sonhos destroçados. É uma coisa que gosto de retratar, e que está no espírito do tempo, toda essa discussão sobre empoderamento.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.