O Brasil tem cerca de 40 mil pessoas esperando por um órgão na fila de transplantes. É muita gente aguardando por uma chance de vida que só pode ser dada voluntariamente pela família de um doador. Trata-se de um gesto de amor, uma baliza que de certa forma dá a medida do grau de solidariedade de um povo. Há anos as pessoas envolvidas no assunto — profissionais de saúde e pacientes — mobilizam-se para que o número de doações cresça, baseados em um trabalho de informação e de criação de empatia da sociedade com as pessoas que aguardam por um coração, um fígado, um rim. Um esforço para conscientização colocado agora em risco por causa de um projeto de lei apresentado à Câmara dos Deputados pelo deputado Daniel Silveira (PSL/RJ).

A proposta prevê que todo brasileiro morto em confronto com agentes de segurança, portando armas no momento da morte, deve ceder compulsoriamente seus órgãos para que sejam utilizados em transplantes. Por agentes de segurança compreende-se policiais militares, civis e federais, agentes penitenciários e da Força Nacional de Segurança, guardas civis e integrantes das Forças Armadas que estiverem participando de missões de garantia da lei e da ordem em estado sob intervenção federal.

SEM DIREITOS

Daniel Silveira é policial militar. Ficou conhecido nacionalmente em outubro do ano passado quando quebrou a placa de rua, no Rio de Janeiro, que levava o nome da ex-vereadora Marielle Franco (Psol), assassinada há um ano junto com o motorista Anderson Gomes. Quando quebrou a placa, ele estava acompanhado de Rodrigo Amorim, então candidato e hoje empossado deputado estadual do Rio de Janeiro.

O projeto da doação compulsória foi o primeiro que ele apresentou, logo no início do ano legislativo. O deputado não consultou nem um especialista no assunto para formular a proposta, baseando-se apenas em suas convicções. A principal delas: para Daniel, criminosos não são seres humanos. “São lixos orgânicos”, considera. A partir da premissa, o deputado defende que nem eles nem seus familiares — os únicos responsáveis pela autorização de doação — têm o direito de dispor do corpo da maneira que desejarem, como acontece com os outros brasileiros, os “cidadãos de bem”, como classifica o parlamentar.

“Criminosos são lixos orgânicos. Tirar seus órgãos para doação
é uma forma de fazê-los pagar pela dívida moral que têm com a sociedade” Daniel Silveira, deputado federal (PSL/RJ) (Crédito:Wenderson Araujo)

Seu raciocínio é simples: de um lado, há demanda por órgãos. De outro, há sobra de oferta — e de órgãos de boa qualidade, segundo ele. “Bandido tem saúde boa”, assegura. Dessa maneira, sua proposta resolveria a questão matemática do problema, não havendo mais déficit de oferta e, além disso, o indivíduo morto em confronto acertaria sua conta com a sociedade. “É uma forma de fazer com que eles paguem a dívida moral que têm com os cidadãos de bem”, defende.

Em um projeto só, o deputado consegue ferir alguns dos princípios que definem humanidade e civilização. Entre eles, a não violação de corpos e a não separação dos indivíduos em categorias que os classifiquem como humanos, sub-humanos ou nem isso. Lixos, como diz. Judeus e homossexuais eram assim considerados pelo regime nazista.

Não se sabe a aceitação da ideia pelos colegas congressistas de Daniel. No entanto, a onda de retrocesso cultural que tomou boa parte do País sugere que o projeto tem até chances de seguir adiante, embora não resista à uma análise jurídica mais profunda. “É totalmente inconstitucional”, afirma o advogado criminalista Roberto Parentoni, presidente do Instituto Brasileiro do Direito de Defesa. “O Estado não pode violar o corpo de um cidadão.” O advogado criminalista Roberto Podval compartilha da opinião. “O projeto fere as garantias individuais na medida em que dá ao Estado o direito de dispor do corpo de alguém, ainda que morto”, explica.

O projeto pegou de surpresa os especialistas brasileiros em transplante. Presidida pelo cirurgião Paulo Pego Fernandes, a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos posicionou-se contrariamente à proposta. “É estapafúrdia”, considera o representante da entidade à qual o deputado Daniel acha que está ajudando. Não percebe que cometeu um erro básico: doação não é punição. Doar é um ato de amor.

O sangue de Che

Crueldade não tem ideologia. Um dos ícones da esquerda mais festejados da história, o médico Che Guevara foi acusado de tirar sangue de seus prisioneiros antes de executá-los. A denúncia consta em um relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos produzido em 1967. As vítimas eram cubanos condenados à morte e presos no presídio de La Cabaña. Segundo o relato, de cada um eram extraídos 3 litros de sangue. O material teria sido vendido ao Vietnã do Norte, comunista como Cuba, então em guerra contra o Vietnã do Sul, capitalista como os Estados Unidos.