06/08/2020 - 12:23
O novo coronavírus invadiu a vida de Regina Evaristo tão inesperadamente quando no resto do Brasil. Um dia seu filho Alan era um enfermeiro, generoso e cheio de vida, e no dia seguinte estava doente, vindo a falecer 15 dias depois.
Tudo ocorreu tão rápido que a mãe não recebeu um último abraço, adeus ou olhar do seu filho.
Alan, de 38 anos, foi enterrado às pressas por coveiros que vestiam trajes de segurança da cabeça aos pés, uma imagem repetida à exaustão em todo o país, que se aproxima das 100.000 mortes pela pandemia, um registro menor apenas ao dos Estados Unidos.
“É uma ferida aberta”, afirma a mãe de Alan, de 54 anos, diretora da organização de caridade ALEA, que fundou junto com seu filho em 2009 no Rio de Janeiro.
“A pessoa some. Depois eles te ligam dizendo: ‘ele faleceu’. E você não pode ver, não pode fazer velório. É uma dor elevada à potência máxima”, conta Evaristo.
Alan morreu em 22 de abril, quando o país somava 2.906 óbitos pela COVID-19.
Em vez de ceder à desesperança, Evaristo transformou a pequena ALEA em uma operação de massa. Recolheu doações e entregou milhares de equipamentos de proteção individual e alimentos aos trabalhadores de saúde que atuam em hospitais nas zonas mais pobres do país, fortemente castigadas pelo vírus.
A mãe de Alan preferiu salvar outros médicos e enfermeiros da falta de capacitação, equipamento e recursos que, segundo ela, mataram seu filho.
É uma batalha enorme em um país de dimensões continentais, onde o presidente Jair Bolsonaro provocou divisões ao minimizar o vírus, chamando-o de “gripezinha”.
– Morrer abandonado –
Regina Evaristo, que estudou teologia e contabilidade, teve diversas experiências de trabalho antes de dedicar sua fé cristã à beneficência e entrar em contato com as favelas, onde sua organização atua.
Ainda assim, nada a preparou para as cenas de terror que presenciou nos hospitais públicos, à beira do colapso pela pandemia.
“Tenho vídeos de pessoas (…) no mesmo hospital onde Alan estava que foram abandonadas nas alas porque os profissionais não tinham equipamento de segurança suficiente. Não havia maneira de entrar para levar nem a alimentação”, relata.
“Muitas pessoas morreram abandonadas”, afirma.
Os profissionais de saúde também foram duramente atingidos pela pandemia: mais de 300 enfermeiros e técnicos de enfermagem morreram de COVID-19, um dos números mais altos do mundo, segundo o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).
Os enfermeiros protestaram para exigir o pagamento de salários atrasados e condenar a corrupção desenfreada no sistema público de saúde, que vai do desvio de recursos para a compra de equipamento de proteção aos fundos destinados a hospitais de campanha que nunca foram construídos.
“O que matou mais pessoas não foi a COVID-19, foi a corrupção”, critica.
– Do luto à luta –
Hoje viúva, Regina Evaristo teve três filhos biológicos, dois dos quais morreram, e dez adotivos, entre eles Alan, que chegou à família aos 12 anos.
Ela recorda que Alan se tornou o mediador da família e quem ajudava a manter a paz entre os irmãos e irmãs.
“Quando todo mundo fica bem, eu também fico bem”, conta que Alan dizia.
“Ele era uma pessoa muito equilibrada, voltada à ajuda humanitária. Tinha uma predileção por trabalhar nas emergências”, acrescenta sua mãe.
Alan, com 20 anos de experiência em enfermagem, trabalhava na sala de emergência do hospital público Carlos Chagas, no noroeste do Rio.
No começo da pandemia, ele foi diagnosticado com o coronavírus após apresentar quadro de febre em 7 de abril. Na época, disse aos familiares que não deveriam se preocupar.
Foi internado com problemas respiratórios três dias depois e entubado após mais três dias. Pouco antes, telefonou para a mãe para dizer que estava bem e que quando saísse do hospital, resolveria um problema que ela tinha com o carro.
Foi a última vez que Evaristo falou com o filho.
Alan deixou esposa e uma filha de nove anos.
“Naquele momento de dificuldade eu tinha dois caminhos: ficar somente com a dor e me lamentando, ou colocar em prática o que nós conversávamos sempre: transformar o luto em luta”, conta a mãe.