A ciência foi retratada no cinema em inúmeros filmes. Mas dessa vez acontece o inverso. Pesquisadores se valeram de equipamentos utilizados no set para aplicações em saúde. Um grupo de cientistas se juntou no Imperial College e na Universy College London (UCL), na Inglaterra, para descobrir formas de melhor detectar os movimentos de pessoas acometidas por graves e raras doenças. E a base utilizada para o trabalho foram dispositivos tecnológicos utilizados no filme Avatar, mas no primeiro, o de 2009. Para que os longas-metragens pudessem atingir os níveis impressionantes de realidade que alcançaram, já que se trata de fabulosa ficção científica, o diretor James Cameron usou trajes de captura de movimentos capazes de reconhecer minúsculos detalhes da movimentação em todas as partes dos corpos dos atores enquanto estivessem em cena. Tal sistema permitiu adequar, por meio de computação, a imagem humana à dos personagens extraterrestres. Os instrumentos cinematográficos se mostram também eficientes para perceber alterações motoras causadas por enfermidades.

O aproveitamento dos dispositivos de Avatar se transformou em duas pesquisas científicas de utilização de Inteligência Artificial publicadas recentemente na revista Nature. Os estudos vieram à tona justamente no momento em que o segundo filme da franquia, Avatar: O Caminho da Água, está batendo recordes de bilheteria. Quando o assunto é doenças raras, muitos casos se referem a algo que é degenerativo e que não tem cura. Ou seja, que compromete aos poucos as funções vitais do organismo. São patologias que, ao evoluírem, levam a pessoa a uma situação de incapacidade, de tal forma que ela não consegue desenvolver as tarefas cotidianas mais simples como, por exemplo, tomar um copo d’água. Desta vez, duas doenças foram observadas com profundidade: Ataxia Friedreich (FA) e Distrofia Muscular de Duchenne (DMD). A primeira enfermidade causa a perda de reflexos, diminuição da sensibilidade profunda e deforma a coluna vertebral. A outra, com o passar do tempo, faz a pessoa ter fraqueza muscular, dilata o coração e provoca dores nas articulações. “Estou completamente impressionada com os resultados”, afirmou à imprensa inglesa a médica Valeria Ricotti. Ela refere-se ao impacto na antecipação de diagnósticos e na criação de novos medicamentos.

“A partir do momento em que tivermos precisão sobre a quantidade de pessoas que têm doenças raras, a produção de medicamentos será menos custosa” Primo Paganini, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da USP

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Resposta rápida

Para que o médico consiga descobrir qual é a doença, em qual nível ela se encontra no organismo e o seu inevitável avanço, tudo isso com precisão, o especialista compara a movimentação do paciente com padrões clínicos de mobilidade, mas tal análise pode levar muito tempo, às vezes anos. E há mais um problema. Por mais experiente e dedicado que o médico possa ser, existe uma enorme diferença entre a visão humana e a da máquina. No estudo a respeito de Ataxia Friedreich, que atinge cerca de 50 mil pessoas em todo o mundo, percebeu-se que, com a utilização do trajes e o auxílio da Inteligência Artificial, as perguntas essenciais sobre a condição do paciente poderiam ser descobertas dentro do prazo de 12 meses. Nos testes feitos em portadores de Distrofia Muscular de Duchenne, que acomete 20 mil crianças por ano, o diagnóstico completo se deu em seis meses. Reduzir o tempo de investigação é fundamental, para propiciar melhor assistência às pessoas.

NO ESTÚDIO DE AVATAR Acima, o diretor James Cameron com um ator usando a malha com sensores; ao lado, a atriz na captura de imagens e a montagem final na tela (Crédito:Divulgação)

“Nossa abordagem detecta movimentos muito sutis. O equipamento vai modificar a forma como analisamos e monitoramos os pacientes”, pontuou o pesquisador Aldo Faisal, do Imperial College. “Na verdade, todas as ações que se referem às doenças raras devem mudar”, entende Primo Paganini, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da USP. Ele explica que os remédios contra patologias incomuns são caríssimos, porque a indústria farmacêutica desenvolve tais medicações de acordo com a quantidade de casos, que não é exata. “A partir do momento em que tivermos, com precisão, o número de pessoas que precisam ser tratadas, a produção de drogas também será mais correta e menos custosa”, diz ele.

ESTUDO Aldo Faisal e uma paciente no Imperial College: ela veste os sensores em pontos do corpo (Crédito:Divulgação)

A invenção do sistema de captação de movimento vai ainda mais longe. Segundo Paganini, tem ação em diversas patologias de ordem psiquiátrica, em problemas cardíacos, nos pulmões e outros. No caso das doenças raras, não há possibilidade de reversão, mas no tratamento de pessoas com Parkinson, por exemplo, a antecipação do diagnóstico pode garantir mais qualidade e tempo de vida. Quando o paciente tem arritmia cardíaca, se os médicos conseguirem descobrir com antecedência, o profissional pode corrigir os batimentos com medicação e evitar uma parada do coração ou um Acidente Vascular Cerebral (AVC). “Com o equipamento podemos melhorar a vida das pessoas e, em alguns casos, evitar que morram”, conclui o psiquiatra.