A partir da aprovação da reforma da Previdência, cuja votação foi iniciada exatamente no dia da Revolução Constitucionalista de 1932 – movimento que serviu para tentar pôr fim ao caráter discricionário do regime getulista sob o qual vivia o País – entra em cena uma nova realidade de poder no Brasil. O presidencialismo de coalizão clássico, consagrado desde a redemocratização e que subjugava o Legislativo aos voluntarismos do presidente eleito, cede lugar a um outro mecanismo de poder, uma espécie de Parlamentarismo branco, no qual o Congresso promete deixar a condição de apêndice do poder Executivo para agir no paralelo, com uma agenda própria para o País. Em discurso na gloriosa noite de quarta-feira 10, quando a Previdência foi aprovada em 1º turno por 379 votos a 131, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, falou como o principal fiador da reforma. “As soluções passam pela política”, bradou, depois de pontuar pontos fundamentais – da agenda de votações, à necessidade de preservação das instituições e do respeito às diferenças. O recado foi eloquente e com endereço certo.

Terminado o trâmite da matéria, ao lado do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, Maia irá entabular um pacotão de medidas que versam sobre temas sociais, como segurança, saúde e educação. Encontram-se no foco, ainda, propostas como a autonomia do Banco Central, a redução da taxa de juros no cheque especial, o contrato de cessão onerosa entre União e Petrobrás e o novo marco legal de saneamento básico. Em reuniões com pesos pesados do empresariado, Maia e Alcolumbre foram incentivados a fazer o País deslanchar, a despeito da cruzada ideológica do Palácio do Planalto, que, na visão deles, estaria atrapalhando a necessária e premente pauta econômica. “Apesar da confusão arrumada por eles, o Brasil precisa andar”, teria dito um integrante do PIB nacional.

Maia: “As soluções passam pela política”. Ele já prepara pacote de medidas em paralelo ao Executivo (Crédito:Jorge William)

O divórcio é iminente. Pela contabilidade do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), o Planalto não terá votos para aprovar projetos de seu interesse, depois da alteração nas regras da aposentadoria. “Vai ser muito difícil unificar Câmara e Senado com esse modelo”, disse Alcolumbre. “Tem que procurar um método de se aproximar da política. A campanha acabou, não dá para ficar incentivando a divisão”, acrescentou. No Congresso, o novo comportamento é encarado como uma reação às práticas adotadas pelo presidente desde a posse. Na verdade, durante a campanha o então candidato Jair Bolsonaro já ensaiava manter uma distância estratégica do Legislativo, dono de uma imagem em frangalhos. Para atender a sua base eleitoral contrariada com a política tradicional, bradou aos quatro cantos que evitaria o “toma lá, dá cá” por verbas e cargos com os parlamentares. Fiava-se numa tese que logo se tornaria equivocada: a de que o Congresso capitularia aos anseios do Planalto fortemente pressionado pelas redes sociais e ruas. Os agentes sociais fizeram sua parte, por assim dizer. Mas os resultados não foram os que o governo esperava. Na prática, o tiro que Bolsonaro esperava dar nas raposas do Legislativo ricocheteou nele próprio: além de não conseguir compor uma base solidificada de parlamentares, viu desabrochar um Congresso senhor de si, cioso do seu papel de motor do País. Resta saber se o Legislativo está mesmo pronto para dar o seu grito de independência. As dúvidas são: se o Parlamento aprovar as medidas necessárias para fazer o Brasil sair da crise e o governo levar o crédito perante à população, os deputados e senadores permanecerão com a mesma estratégia? E como se portarão os parlamentares que ainda dependem dos agrados do Executivo para se credenciarem junto às bases eleitorais? A ver.

Na campanha, Bolsonaro ensaiava manter uma distância estratégica do Congresso. Agora, o Legislativo lança agenda própria

A história sugere que pode ter chegado a hora de uma inflexão. O Congresso Nacional foi criado em 1824, seguindo o modelo de bicameralismo da Carta monárquica francesa, elaborada após a queda de Napoleão Bonaparte. A Constituição Imperial determinou, em seu artigo 14, a criação de uma “Assembleia Geral”, que integrasse a Câmara dos Deputados e o Senado. Com o fim da Monarquia e a ascensão da República, a nova Constituição de 1891 formalizava o Poder Legislativo enquanto exercício do Congresso Nacional. Em 1934, no entanto, a nova Constituição romperia com o bicameralismo. Uma nova condição ao viria pela Constituição de 1937 com a instituição do “Parlamento Nacional”. O modelo foi encerrado pelo então presidente Getúlio Vargas (1882 – 1954) e suas recorrentes edições de decretos-lei. Somente em 1946, o poder legislativo brasileiro voltava a ser denominado de “Congresso Nacional”. Fechado com o golpe em 1964, o Legislativo viveria momentos de altos e baixos até alcançar o estágio atual. Em 1988, com a promulgação da nova Constituição, experimentou momentos de luta e de glória, sob Ulysses Guimarães. Dizia ele: “A nação quer mudar. A nação deve mudar. A nação vai mudar”. Mudou a nação. Agora quem quer mudar é o próprio Congresso.