Dante Alighieri não inventou apenas o idioma italiano, mas também o amor à primeira vista. Aos nove anos, conheceu Beatrice Portinari, a mulher de sua vida, e só a reencontrou tempos depois, passeando pelas ruas de Florença acompanhada de duas amigas. Foi o suficiente para inspirá-lo a escrever a “Divina Comédia”, uma das maiores obras literárias da história. Aos 12, Dante casou-se com Gemma Donati em uma união arranjada entre as famílias. Sobre ela, nunca escreveu uma linha.

O ano de 2021 tinha tudo para ser uma grande festa na Itália, mas a pandemia não deixou. Mesmo de forma acanhada, o país celebra os 700 anos da morte de seu principal poeta. Entre as homenagens, está o lançamento da biografia “Dante”, de Alessandro Barbero. O livro, que sai no Brasil em outubro pela Companhia das Letras, tem sido elogiado por tratar o mito como homem – não um ser “divino”, adjetivo acrescentado posteriormente à sua “Comédia” por outro mestre italiano, Giovanni Boccaccio. “Sou um historiador, não um crítico literário”, afirmou Barbero em uma live promovida por uma universidade americana. “Não posso explicar por que é tão importante ler Dante. Fui atraído pela ideia de contar a vida do indivíduo do século 13 sobre quem, provavelmente, há mais registros e arquivos.”

REALIDADE Dante Alighieri: casamento por
interesse e acusação de corrupção (Crédito:Divulgação)

“Meu trabalho não aborda o artista, mas o homem medieval que calhou de ser nosso maior poeta” Alessandro Barbero, autor de “Dante”

Barbero aborda outra questão essencial: a publicação em italiano “vulgar” – volgare –, em vez do latim, idioma predominante na época. O autor explica que a opção estética de Dante estava relacionada ao público-alvo. Quando escrevia para outros intelectuais, como ele, adotava o latim. No caso da “Comédia”, queria atingir um público mais jovem. Escrever poesia em volgare – o termo unificado “italiano” para o idioma ainda não existia – era uma vitória para a sua geração. Concebida entre 1301 e 1321, a obra só foi traduzida para inglês e espanhol no final do século 14. A demora ocorreu porque não havia necessidade: o poder da Igreja fez do italiano uma espécie de língua universal falada em todo o mundo, como o inglês é hoje. Isso só mudou no século 16, quando, graças a William Shakespeare, o idioma britânico passou a disputar essa hegemonia. A obra de Barbero também é uma verdadeira aula sobre a organização política da Idade Média, onde religião e poder eram duas faces do mesmo florim. Assim como outras nações, a Itália era dividida em cidades-estado, com governos autônomos e uma luta constante entre imperadores europeus e papas.

Exílio e violência

Quando Dante nasceu, em 1265, Florença era uma república independente do Sacro Império Romano e também dos estados pontifícios, localizados ao sul. Por diferenças políticas – ou por corrupção, como foi acusado formalmente –, o poeta foi exilado, primeiro em Pádua, na região do Vêneto, e, mais tarde, em Ravena, região da Romania (hoje Emilia-Romagna), onde faleceu, em 1321. A maior prova de que seu casamento com Gemma Donati era mais uma aliança familiar que uma relação amorosa reside no fato de que a esposa não o acompanhou no exílio. Segundo o poeta Boccaccio, citado no livro, Dante ficou, na verdade, aliviado ao saber que a mulher não o acompanharia. Estaria livre para fazer eternizar a homenagem ao seu grande amor, Beatrice, que já havia morrido em 1290, aos 25 anos.

A “Divina Comédia” é dividida em três episódios – Inferno, Purgatório e Paraíso. A cruel primeira parte do livro, onde Dante é guiado pelo poeta Vírgilio, pode ter sido inspirada no ambiente para o qual Barbero chama a atenção: a violência extrema era parte intrínseca dessa sociedade. “No século 20, quando uma guerra chegava ao final, as pessoas voltavam a uma certa normalidade”, diz Barbero. “Na Idade Média, assassinar pessoas e duelar até a morte nas ruas era parte do cotidiano. Era comum um grupo de pessoas se reunir e, de uma hora para outra, decidir derrubar o governo.” No Paraíso, Dante é guiado por Beatrice.

Garoto apaixonado, poeta supremo, homem público acusado, exilado. Uma faceta desconhecida de Dante, porém, também é revelada pelo livro de Barbero. Longe das penas e das bibliotecas, o poeta teve sua fase de cavaleiro medieval, com armadura, espada e tudo o mais a que tinha direito. Em 1289, juntou-se a outros 600 soldados do exército de Florença para lutar pela supremacia papal na sangrenta batalha de Campaldino, contra os inimigos da cidade-estado de Arezzo. Se tivesse morrido, a humanidade não teria a oportunidade de conhecer a “Divina Comédia” – isso, sim, seria uma tragédia.