Dívida, dominância fiscal e o esgotamento da política econômica brasileira

O estado que devora o futuro: nos últimos anos, o país consolidou um modelo de governo de curto prazo, incapaz de projetar qualquer horizonte fiscal além do próximo ciclo eleitoral

Dívida, dominância fiscal e o esgotamento da política econômica brasileira

Há momentos em que a economia deixa de ser apenas um campo técnico e se torna um espelho moral do Estado. O Brasil vive precisamente esse ponto de inflexão. A dívida pública, que ultrapassa R$ 9,4 trilhões (76,6% do PIB), já não é apenas uma variável macroeconômica — é o retrato de uma estrutura política que perdeu a capacidade de dizer “não”.

Nos últimos anos, o país consolidou um modelo de governo de curto prazo, incapaz de projetar qualquer horizonte fiscal além do próximo ciclo eleitoral. Essa inversão — em que o cálculo político substitui o planejamento econômico — está levando o Estado brasileiro a uma situação de dominância fiscal, conceito que, no plano jurídico-econômico, representa o colapso da hierarquia entre política fiscal e monetária.

Em tese, a política monetária deve controlar a inflação, enquanto a política fiscal zela pelo equilíbrio das contas públicas. Mas quando a dívida se torna grande demais, o aumento da taxa básica de juros (Selic) encarece o serviço da dívida e agrava o déficit, o que força o Tesouro a emitir mais títulos — e, por consequência, pressiona a própria inflação. O Banco Central perde eficácia, e o Estado passa a financiar sua própria desordem.

Essa subversão do princípio da responsabilidade fiscal — que deveria ser um valor constitucional, e não um artifício contábil — corrói a credibilidade da política econômica e transfere o custo do desequilíbrio às futuras gerações. A dívida deixa de ser instrumento de desenvolvimento e se torna mecanismo de estagnação.

Entre a Constituição e o colapso

Do ponto de vista jurídico, o que se assiste é a erosão silenciosa do art. 163 da Constituição Federal, que impõe ao Estado o dever de manter equilíbrio entre receitas e despesas, e do art. 167, III, que veda operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital.

Essas normas, no entanto, vêm sendo reinterpretadas sob o manto da “flexibilidade fiscal”, criando um espaço de exceções permanentes em nome da “inclusão”, da “reindustrialização” ou da “proteção social”. Nenhum desses objetivos é ilegítimo — mas o caminho percorrido para financiá-los é.

A política fiscal brasileira, ao longo da última década, foi capturada por um ciclo de expansão sem contrapartida, sustentado por endividamento crescente e pelo aumento de renúncias tributárias que já somam mais de R$ 500 bilhões anuais.

O resultado é um orçamento público rígido, de baixa eficiência e crescente dependência de rolagem da dívida — fenômeno que, em termos econômicos, representa a auto-alimentação do déficit.

O custo institucional do desequilíbrio

Do ponto de vista econômico-jurídico, a consequência mais grave não é apenas fiscal, mas institucional. Quando o Estado gasta mais do que arrecada, por tempo prolongado, ele compromete a própria função legitimadora da tributação. O contribuinte deixa de ver o imposto como instrumento de solidariedade e o percebe como preço da ineficiência.

Essa erosão da confiança social tem reflexos diretos na produtividade, na formação de capital e na disposição de empreender. O excesso de tributos — mais de 90 espécies diferentes, consumindo 2.600 horas anuais das empresas — não é apenas uma distorção econômica, mas uma violação indireta ao princípio da capacidade contributiva, pois pune mais quem tenta produzir dentro da legalidade.

É nesse ambiente que o conceito de crise fiscal precisa ser reinterpretado: não se trata de falta de recursos, mas de ausência de coerência institucional. O Brasil arrecada como país desenvolvido e entrega serviços como Estado em desenvolvimento. Essa disfunção é o cerne da nossa desigualdade.

O fim da neutralidade e a captura do futuro

A dívida pública brasileira tornou-se um mecanismo de reprodução política. As emendas parlamentares — hoje constitucionalizadas — transformaram o orçamento em instrumento de poder e chantagem, não de planejamento.

Cada governo herda o mesmo problema: alta despesa obrigatória, baixa capacidade de investimento e incentivos eleitorais para gastar mais. O ciclo se retroalimenta, enquanto o discurso de “responsabilidade social” mascara a irresponsabilidade fiscal.

O Direito Financeiro moderno ensina que o equilíbrio orçamentário não é uma meta contábil, mas uma condição de legitimidade do Estado Democrático. Sem ele, o Estado deixa de ser garantidor de direitos e passa a ser seu maior violador, ao impor inflação, desemprego e perda de poder de compra — formas silenciosas de tributação regressiva.

O caminho possível

A solução não está em retórica fiscalista nem em voluntarismo político. Exige três movimentos estruturais:

1. Reforma administrativa real, que reestruture carreiras, modernize vínculos e redirecione gastos para resultados;

2. Simplificação tributária efetiva, com integração de sistemas e redução da litigiosidade que hoje supera R$ 6 trilhões;

3. Regra fiscal crível, vinculada a metas de resultado primário e limites de despesa ajustados ao ciclo econômico.

Essas reformas são a base de uma nova racionalidade fiscal: uma que substitua o improviso pela institucionalidade e o populismo econômico pela técnica.

Sem isso, o Estado brasileiro continuará sendo o mesmo — não o que produz riqueza, mas o que a consome.

Conclusão

O colapso fiscal não é inevitável, mas é previsível.

O Brasil está diante de uma escolha ética e institucional: continuar financiando sua própria ineficiência ou reconstruir um Estado que produza crescimento, e não apenas dívida.

A economia é, no fim, a política escrita em números. E nossos números, hoje, já não mentem.