ANOS DE CHUMBO A LSN criada pelos militares já tem data para acabar (Crédito:ARQUIVO NACIONAL/CORREIO DA MANHÃ)

Criada na ditadura militar para perseguir os inimigos do regime autoritário, a Lei de Segurança Nacional (LSN) deverá ser revogada e substituída por nova legislação nos próximos dias pela Câmara. E, por mais paradoxal que pareça, o fato é comemorado tanto pelos adversários de Bolsonaro, que estão sendo enquadrados e indiciados com base na lei, quanto pelos bolsonaristas, que poderão se valer do futuro ordenamento jurídico para terem abrandadas punições pelos crimes cometidos nos atos antidemocráticos de maio do ano passado e também pela emissão de fake news, em processos investigados pelo STF. O fim da famigerada LSN, que vem sendo acionada pelo governo Bolsonaro até em maior escala do que a registrada durante os anos de chumbo, vem sendo articulado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), líder do governista Centrão, o que, por si só, levantaria suspeitas de que Bolsonaro estaria por trás dessa mudança, mas congressistas, inclusive da oposição, entendem que se o Congresso não revogar a legislação despótica agora, o Supremo a declarará inconstitucional e a revogará integralmente. O que o Centrão quer, portanto, é dar uma nova roupagem a alguns itens da lei autoritária que possam ser adaptados para salvar a pele de bolsonaristas envolvidos em ações contra a democracia.

A LSN será substituída pela Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, sugerida pelo ex-ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, em proposta que tramita na Câmara desde 2002. A nova legislação está sendo capitaneada pela deputada Margarete Coelho (PP-PI), aliada de Lira, e que é a relatora do projeto que vai tratar dos crimes que ameaçam a democracia. O presidente da Câmara chegou a pedir urgência na votação, permitindo que a matéria seja analisada diretamente pelo plenário, sem antes ter de passar por qualquer comissão. A tendência é que seja aprovada nos próximos 15 dias. Parlamentares próximos a Lira dizem que a ideia é evitar um “vácuo legislativo”, já que o STF pode votar em breve cinco ações abertas por partidos políticos que questionam diversos trechos da LSN, que vem sendo usada e abusada por Bolsonaro para enquadrar seus adversários. Todas essas ações estão sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, que tende a considerar a LSN como inconstitucional e revogá-la por completo.“Temos um acordo para votar esse projeto logo, porque o STF está com cinco ações sobre o assunto para serem julgadas. Se o Supremo declarar a LSN inconstitucional, teremos um vácuo legislativo e é isso que queremos impedir”, afirmou Margarete Coelho.

Por trás desse esforço, no entanto, Lira tem outros objetivos. O primeiro deles é mandar um recado ao STF, sobretudo ao ministro Alexandre de Moraes, de que o Congresso não vai mais tolerar punições a bolsonaristas, como vem acontecendo. Segundo fontes ligadas a Lira, Moraes já mandou prender apoiadores bolsonaristas no âmbito do inquérito das fake news, que apura disseminação de notícias falsas na internet, e também autores de ameaças a ministros da Corte. Mais recentemente, o ministro do STF determinou a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), acusado de insultar integrantes do tribunal. Com base na LSN, Moraes também enquadrou bolsonaristas fiéis, como o empresário Luciano Hang, investigado por ajudar a financiar a disseminação de notícias falsas.

Penas mais brandas

Eleito para a presidência da Câmara com apoio de Bolsonaro, Lira também fará um aceno ao ex-capitão e à sua base de apoio, já que com a nova lei as penas contra bolsonaristas investigados pelo STF devem ser abrandadas. Em alguns casos, elas podem até deixar de existir. Por outro lado, o presidente da Câmara pretende ainda ganhar alguns pontos com partidos de oposição a Bolsonaro. Afinal, sob comando do mandatário, a Polícia Federal abriu 77 inquéritos com base na LSN, a maioria deles para investigar pessoas que criticam o governo ou publicam mensagens contra o presidente. Manifestantes chegaram a ser presos recentemente em Brasília por estenderem uma faixa com a frase “Bolsonaro Genocida”. O governo também mandou investigar a publicação de uma charge na qual o mandatário aparece transformando a cruz vermelha (símbolo de hospitais) na suástica nazista. Desde então, congressistas da oposição passaram a condenar o uso político que Bolsonaro vinha fazendo da LSN, na tentativa de reprimir manifestações contra ele.

ESTADO DE DIREITO Nova lei será baseada em projeto de Miguel Reale Júnior, que acabará com o autoritarismo (Crédito:André Coelho)

A relatora do projeto já disse que a intenção da Câmara é revogar totalmente a LSN e criar no lugar um novo título no Código Penal denominado “Dos crimes contra o Estado Democrático de Direito”. Ela já antecipou que vai sugerir alterações no projeto original de Reale Júnior no relatório que apresentará ao plenário. Margarete afirmou que incluirá no texto a criminalização do disparo em massa de notícias falsas com objetivo de interferir no resultado de eleições e a violência política contra mulheres. A relatora indicou também que a nova lei vai definir o que são os crimes contra a soberania nacional, como traição, espionagem, golpe de estado, conspiração, atentado contra autoridades e incitamento à guerra civil.

Alguns congressistas pressionam Margarete Coelho por mais alterações no projeto original. A avaliação é de que alguns pontos da proposta de Reale Júnior podem criminalizar atos de movimentos sociais ou mesmo greves. “O texto tem alguns tipos penais muito abertos, que podem ser usados para punir movimentos sociais, fundamentais para a democracia”, afirmou o deputado Paulo Teixeira (PT-SP). De qualquer forma, o parlamento vai pôr fim a mais uma das excrescências da ditadura, o que não deixa de ser alvissareiro.