A ONU celebrou na última semana seus 75 anos numa ocasião histórica, em meio a uma emergência global de saúde e crise econômica histórica. Era uma oportunidade para o Brasil ressaltar seu protagonismo e o próprio papel como um dos grandes patrocinadores da organização — daí a tradição que cabe ao líder brasileiro de abrir os debates. Mas Jair Bolsonaro ignorou a efeméride e repetiu, como fez em 2019, um show de inverdades e desinformações, ampliando a desconfiança da comunidade internacional e colocando o País na contramão do mundo em questões vitais, como o desenvolvimento sustentável. “Foi um discurso muito parecido com o do ano passado, mas pior pelas circunstâncias”, resumiu um dos mais influentes diplomatas brasileiros, Rubens Ricupero, ex-embaixador, ex-ministro e diretor da Faap. “No último ano houve fracassos novos, mas o presidente continuou na mesma lenga lenga, sem reconhecer os problemas”, afirmou.

Bolsonaro usou o palco internacional para falar aos próprios apoiadores. Considerado um dos líderes de pior performance na pandemia, exaltou suas ações, tentou transferir a responsabilidade da crise para governadores e voltou a defender medicamentos sem comprovação científica, como a cloroquina. Ignorando que o País tem um dos índices mais altos de óbitos, acusou a imprensa de “disseminar o pânico”. Mas não citou a tentativa de mascarar as informações sobre mortos e feridos, manobra que só foi impedida pelo STF, pela própria imprensa e pela reação da sociedade. Pelo menos lembrou, ainda que de forma protocolar, os 140 mil mortos de Covid-19, o que não fez em território nacional, ignorando-os sistematicamente nos últimos seis meses. Mirando os evangélicos, sua base de apoio, o mandatário denunciou a “perseguição religiosa”e a “cristofobia”. Desvirtuando sua ação caótica na crise, vangloriou-se de um programa que promoveu “mil dólares de auxílio emergencial” para milhões de brasileiros.

Em relação ao meio ambiente, área em que o País enfrenta seu maior escrutínio no exterior, Bolsonaro insistiu na atitude negacionista. O presidente simplesmente mentiu ao dizer que seu governo pratica “tolerância zero com o crime ambiental”. Não deu nenhum alento para a destruição ambiental que cresce olhos vistos, comprovada por dados de várias instituições isentas, do Brasil e do exterior, amparadas em imagens de satélite e dados públicos. Pelo menos não levou a tiracolo a índia Ysani Kalapalo para mostrar apoio da comunidade indígena, como fez no ano passado — ela rompeu com o presidente. Mas falseou a realidade mais uma vez ao dizer que “floresta úmida não pega fogo”, culpando caboclos e índios por parte das queimadas, pois “queimam seus roçados em busca de sobrevivência”. Reforçando a visão persecutória e paranoica do seu anacrônico grupo de apoio militar e ideológico, atribuiu a péssima fama do Brasil na área ambiental a uma “brutal campanha de desinformação”.

ONU NA MIRA Líderes populistas como Donald Trump, Vladimir Putin e Nicolás Maduro fragilizam a democracia e ameaçam o multilateralismo expresso pela organização (Crédito:RICK BAJORNAS/MANUEL ELIAS/)

Fuga de investidores

Com sua fala diversionista, o presidente negou a realidade cada vez mais evidente de que o governo está criando a tempestade perfeita para afugentar investidores. Disse que neste ano houve um aumento no ingresso de investimentos externos, o que prova “a confiança do mundo em nosso governo”. É uma mentira, e a crise de confiança pode ser traduzida facilmente em mais números. Ao contrário do declarou o mandatário, o Banco Central registrou de janeiro a agosto o pior resultado para os investimentos externos em uma década. O ingresso foi de US$ 27 bilhões, uma queda de 41% em relação ao mesmo período do ano passado. Não é só. Os investidores estrangeiros retiraram mais de R$ 87,3 bilhões da Bolsa até o mês de setembro, o dobro da fuga registrada em 2019. É a maior debandada desde 2008, quando o sistema financeiro global entrou em colapso. O real disputa a liderança entre as moedas que mais se desvalorizaram este ano. A crise ameaça os negócios, e preocupa industriais, empresários do agronegócio e banqueiros. Grandes investidores do exterior já deixaram claro que o País sofrerá as consequências da atual política. O acordo Mercosul-União Europeia está ameaçado por isso. “Há uma infinidade de manifestações contra o governo, que não reconhece o problema ambiental e aponta uma conspiração de interesses escusos. É uma versão que não cola, uma reincidência. Hoje há quase uma unanimidade contra o governo brasileiro”, critica Ricupero. Para ele, o discurso do presidente apenas reforça que o Brasil vai continuar a desafiar o mundo. “Ele está se lixando para a opinião pública internacional e para as consequências ao agronegócio e à economia.”

SUBMISSÃO Ernesto Araújo tenta explicar no Senado a recepção ao vice-presidente dos EUA Mike Pompeo em Roraima: americano mirou o eleitorado da Flórida (Crédito:Edilson Rodrigues)

O pronunciamento de Bolsonaro, enviado por vídeo (como fizeram quase todos os líderes por causa da pandemia), alinha o País com o bloco responsável pelas maiores ameaças à ordem internacional das últimas décadas, responsável pela desestabilização das instituições multilaterais e pela relativização das leis internacionais. O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou que o “populismo e o nacionalismo fracassaram” no combate à pandemia do novo coronavírus, mas a instituição está fragilizada e a Organização Mundial da Saúde (OMS) vem sofrendo seguidos ataques. Com a exceção da União Europeia, os grandes centros de poder — EUA, China e Rússia — são governados por líderes que demonstram atitude unilateral. Bolsonaro se espelha justamente em Donald Trump, que pode perder as eleições de novembro em seu país, dando lugar a um democrata que já sinalizou tempos difíceis para o Brasil em função do atual governo. O País paga o preço de uma relação desequilibrada. Na ONU, Bolsonaro elogiou Trump, mas o americano ignorou o brasileiro em seu discurso. Isso aconteceu quatro dias depois de Bolsonaro aprovar uma duvidosa ação de marketing para ajudar o republicano em sua campanha pela reeleição. Permitiu que o vice-presidente americano, Mike Pompeo, visitasse o acampamento de refugiados venezuelanos em Roraima para gravar críticas ao regime de Nicolás Maduro. O objetivo era fortalecer Trump na comunidade latina da Flórida. Para o Brasil, foi mais um sinal de subserviência aos EUA e um novo golpe a princípios cultivados ao longo de décadas pelo Itamaraty, inscritos na Constituição, como a rejeição à interferência externa e o respeito à autodeterminação dos povos. Na ONU, Boslonaro ainda culpou o regime venezuelano pelo derramamento de óleo em 2019, mas omitiu que a Marinha não conseguiu até o momento descobrir as circunstâncias do desastre. É mais fácil culpar os outros do que mostrar competência em apurar os fatos.

“O populismo e o nacionalismo fracassaram no combate à pandemia” António Guterres, secretário-geral da ONU (Crédito:ESKINDER DEBEBE)

Papelão em Roraima

O papelão em Roraima provocou reações previsíveis no Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que a visita de Pompeo foi uma “afronta” à política externa brasileira. Convidado para explicar o episódio no Senado, na quinta-feira, 24, o chanceler Ernesto Araújo ouviu críticas dos senadores. Integrante da ala mais ideológica do governo e responsável em parte pelo discurso na ONU, ele também prega para convertidos. Sua pasta tem poucos resultados práticos a apresentar à nação. Cresce o isolamento do Brasil e a identificação de Bolsonaro com o bloco de líderes populistas e nacionalistas como Viktor Orbán (Hungria), Narendra Modi (Índia), Recep Erdoğan (Turquia), Vladimir Putin (Rússia), Aleksandr Lukashenko (Bielorrússia) e o próprio Maduro, que é uma inspiração para muitas ações antidemocráticas do brasileiro. É uma companhia duvidosa, para dizer o mínimo. O Brasil participou ativamente da criação da ONU e se alinhou com o consenso internacional que garantiu quase oito décadas de paz e prosperidade. Agora, pode integrar a corrente dos forças que desejam reverter esse consenso internacional baseado em leis e direitos, destruindo o multilateralismo em nome de um bandeiras retrógradas e alimentando ameaças de um futuro sombrio.