ADVOGADA Após ser demitida da Marinha, Bianca acabou se formando em advocacia e defendeu inúmeros colegas trans (Crédito:Divulgação)

Maria Luiza ingressou na Força Aérea Brasileira (FAB) em 1979, uma jovem sonhadora. Ela lembra que ainda muito pequena, ao ouvir qualquer barulho nos céus, corria para o quintal da casa onde morava, no interior de Goiás, e ficava admirando os aviões cruzando o alto. Daí a ingressar na FAB, se formar em mecânica de aviação e trabalhar com motores de aviões militares, foi um pulo. Ficou 22 anos na Aeronáutica, nunca teve uma punição sequer e foi várias vezes condecorada. Até que, ao assumir sua transexualidade, em 1998, passou por todo tipo de humilhações. Foi proibida de usar a farda masculina, depois rejeitaram que ela usasse a feminina, até que foi obrigada a se apresentar com roupa civil. Dois anos depois, ela viu sua carreira ser interrompida contra sua vontade.

O laudo apresentado pela FAB atestava transexualidade, na época considerado um transtorno mental, como a causa para sua aposentadoria compulsória. “Aquele resultado me pegou de surpresa. Eu era uma profissional exemplar. Esperava aceitação. Na minha cabeça, era só uma questão de mudar os documentos e o fardamento. Foi uma ruptura traumática”, relata Maria Luiza, primeiro caso de militar trans no Brasil, hoje com 61 anos, e voz emocionada de quem ainda carrega uma ferida aberta. Em 2002, entrou na Justiça para reverter a aposentadoria e, em 2014, uma sentença em primeira instância anulou o processo e determinou sua volta à ativa. Mas em virtude dos recursos apresentados, essa volta se deu apenas no papel. Até hoje o processo ainda está no Superior Tribunal de Justiça (STJ), aguardando para ser julgado o embargo de declaração apresentado pela Advocacia Geral da União (AGU).

De lá para cá, as coisas mudaram um pouco, mas as Forças Armadas continuam sem saber o que fazer para lidar com os casos de militares trans. Ainda mais depois da decisão, em 2018, da Organização Mundial da Saúde (OMS), que deixou de considerar a transexualidade um transtorno mental e fixou o prazo de 1º de janeiro de 2022 para que ela fosse adotada por todos os países que integram o organismo. Por conta de ter sido considerado um transtorno mental por 28 anos, vários outros militares trans passaram por situações semelhantes às vividas por Maria Luiza.

É o caso da capitã-de-corveta da Marinha, Bianca Figueira, de 50 anos, que, em 2008, após 21 anos de carreira militar, decidiu revelar sua transexualidade. Até então, Figueira, como era conhecida, era uma militar gabaritada, com funções de comando e respeitada por todos. No dia seguinte após ter revelado sua condição, foi destituída de suas funções. Ela diz que ainda hoje o posicionamento das Forças Armadas diante dos casos de militares trans não é de receptividade. “Eles arrumam logo um afastamento porque eles não sabem o que fazer com elas, já que hoje as mulheres podem assumir qualquer cargo, o que não acontece com as trans. “As Forças Armadas precisam propor um tipo de aceitação e acolhimento diferente do que aconteceu com os seis militares trans reformados. Hoje, há nove militares trans na ativa, fora os que ainda não relataram sua transexualidade”.

Para o defensor público federal Thales Arcoverde Treiger, já houve um avanço, mas na Marinha ainda há resistência. “No geral, há um machismo muito grande nas Forças Armadas e isso é próprio da questão militar. O que me chama a atenção é a sexualização da situação. Que banheiros e alojamentos usar, por exemplo?”. Thales foi procurado em 2017 por Bruna Benevides, também militar trans e atualmente uma das maiores referências na defesa de direito das pessoas trans no Brasil, para entrar com uma ação civil pública e uma ação individual contra a Marinha do Brasil.

PIONEIRA Maria Luíza assumiu sua condição de transexualidade em 1998: aposentada pela FAB (Crédito:Sergio Dutti)

Bruna é 2º sargento e entrou para a Marinha em 1997, com apenas 17 anos. Diz que a Marinha salvou sua vida. “Vivia num ambiente muito repressor e estava destinada em agarrar qualquer bóia que me tirasse dali. Entrar na Marinha foi um respiro”, confessa. Logo começou a sofrer perseguições por não fazer o tipo másculo. “Era tudo muito contraditório porque eu sempre fui uma militar exemplar”, conta Bruna, que conheceu Bianca em 2008, quando ressurgiu o desejo de assumir sua transexualidade no ambiente de trabalho.

Assim que recebeu o laudo de seu afastamento, entrou com uma ação e conseguiu impedir sua reforma. Desde então, ela está afastada, mas não reformada porque a Justiça determina que a transexualidade não é motivo para exclusão. Sua ação agora está no STJ. Para Bruna, a forma como as Forças Armadas escolheram lidar com as pessoas trans denuncia as violações dos Direitos Humanos e da individualidade dos cidadãos. “Nossa luta é para que a nossa condição de trans deixe de ser vista como uma incapacidade e que a sociedade entenda que pessoas trans têm muito a contribuir para a democracia e a construção dos direitos individuais”. O Brasil ainda está longe de respeitar os direitos humanos de seus soldados.