“Estou lutando pelo direito à vida, pelo direito ao planejamento familiar, pela dignidade humana e direitos fundamentias” Dilermando Cigagna Junior, advogado de Taciana (Crédito:GABRIEL REIS)

Já viu pernambucano triste por muito tempo? É bem difícil. E pernambucana? Mais difícil ainda. Taciana da Cunha Rêgo Zillo, 38 anos, nasceu em Pernambuco e assim se definia: alegria e somente alegria. Mas isso é passado. Quis o destino que duas tragédias, uma puxando a outra, lhe cruzassem o destino. Taciana entristeceu, e as pitadas de humor que conserva são, agora, cortantes — é o que podemos chamar de o humor da tristeza. Antecipa-se, aqui, essa característica de Taciana, para que a leitora e o leitor não se surpreendam com suas eventuais falas ao longo da história. E o que a fez ficar assim? Primeiro, a morte do marido, justamente em um momento de extrema felicidade: esquiando na Suíça, em fevereiro de 2017. A segunda razão é a Justiça, que, por enquanto, lhe nega o direito de implantar dois embriões congelados que lhe foram deixados pelo marido com expresso desejo que ela os geste — a Constituição Brasileira e o Código Civil fixam que a vida começa na concepção, ou seja, embriões já são vidas humanas, mas alguns ministro de Corte Superior estão minimizando esse fato. “A Constituição e o Código Civil asseguram os direitos do nascituro”, diz o advogado civilista Dilermando Cigagna Junior, defensor de Taciana. “Eu estou lutando pelo direito à vida e ao planejamento familiar”.

A morte do marido, essa dor fica para Taciana no campo do imponderável e irremediável. Já o segundo motivo de sua tristeza, o que diz respeito à Justiça, dá para solucionar se os tribunais abandonarem o formalismo e observarem a lógica: “Por que meu marido iria deixar dois embriões sob a minha guarda, espermatozóide dele e óvulos meus, se não é para eu implantá-los?”, indaga Taciana. “É para eu colocá-los na bolsa de gelo e levá-los a passeio no calçadão?”. Ela faz uma pergunta, ela mesma responde com outra pergunta, eis o humor cortante do qual se falou. É o coração da mãe de embriões que estão proibindo que se torne o coração de mãe de gente nascida. Como se vê, as tristezas se entrelaçam. O caso de Taciana é inédito na Justiça brasileira, e os dois embriões estão criopreservados no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Não existe no País uma legislação voltada especificamente para caso como o dela, devendo ele ser julgado, portanto, de acordo com a Constituição e o Código Civil. Não é isso, porém, o que ocorreu no mais recente trâmite do processo no Superior Tribunal de Justiça. Motivo: a cultura cartorial.

José Luiz Zillo, empresário do ramo energético, proprietário da usina Zilor, vivia entre o Brasil e a Europa e tinha dois filhos adotivos do primeiro casamento (com Taciana foi o terceiro), ambos atualmente na faixa etária dos 40 anos. Vivia ele entre o Brasil e a Europa. Entre a Europa e o Brasil também vivia Taciana. Foi em São Paulo, contudo, que eles se conheceram. Começaram a namorar em 2010, noivaram formalmente e casaram em 2013, no Recife, em uma “festa restrita e elegante”, conforme diz Taciana, festa que contou com suas amigas a princesa do Kwait Nooral Sabah, a princesa do Barém Raya Al Khalifa e a rainha do alto astral da MPB nacional, Rita Lee. José Luiz estava com 72 anos de idade e Taciana contava com 30 anos. Devido à diferença de 42 anos, a separação de bens teve de ser absoluta, como quer a lei: Taciana, dessa forma, não é herdeira de nada.

2017 O casal esquiando em St. Moritz: última foto de José Luiz em vida (Crédito:Divulgação)

Correu o tempo, correram as viagens para a Europa, todos os anos José Luiz e Taciana, exímios esquiadores, curtiam o esporte favorito em St. Moritz. Dois anos após o casamento, em 2015, ele se submeteu a cinco dolorosos procedimentos eletivos de retirada de espermatozoides, firmando um termo de consentimento. Ao mesmo tempo, foram coletados óvulos da esposa e fez-se a fecundação in vitro, resultando dela dois embriões preservados no gelo. Em 2017, tudo que era festa virou luto: na mesma St. Moritz, na mesma prática de esqui, José Luiz faleceu. Deixou uma herança de aproximadamente R$ 3 bilhões.

Não é a herança que está na ação na Justiça, embora o resultado do julgamento final possa ter desdobramentos na partilha. Em pauta, há a amplitude e abrangência do termo de consentimento firmado por José Luiz, no qual ele deixou a guarda e tutela dos embriões para esposa. Trata-se de polêmica ilógica e discussão despicienda, “nada que o bom senso não resolva”, como ensina o livre-docente em direito civil da USP, José Fernando Simão. “Se o marido deixou sob a guarda da mulher os embriões, é para ela fazer o que quiser, inclusive implantá-los em si. Saia às ruas e aborde esse tema com as pessoas. Todas terão a mesma opinião”, diz ele. E acrescenta: “A carência de legilação e o formalismo estão atrapalhando”. Taciana ganhou o direito de implante no Tribunal de Justiça de São Paulo por três votos a zero e perdeu no STJ, em Brasília, por três votos a dois.

O STJ entendeu que faltou uma declaração expressa de José Luiz. Com essa visão, equivoca-se, confundindo o sentido de “expressar” com o sentido de “escrever”. O termo de consentimento é expresso: José Luiz não teria deixado a tutela dos embriões com Taciana, autorizando o descarte deles somente na hipótese de comoriência (morte simultânea dos genitores), se não fosse para ela implantá-los. “No direito civil, autorização expressa não quer dizer escrita, nem quer dizer que tenha de ser deixada, por exemplo, em testamento”, diz o professor doutor em direito civil Mário Luiz Delgado, presidente da Comissão do Direito da Família do Instituto dos Advogados de São Paulo. No direito civil, até a manifestação oral vale nesse caso como vontade expressa, já que não há lei específica fixando normas de procedimento. “Se aquilo que é oral tem valor, então é claro que também vale o termo deixado por José Luiz, que é escrito”, afirma Delgado. Finalmente, há um aspecto que deve ser observado. O que o Estado tem a ver com a história? “Na verdade, o Estado não pode interferir no destino desses embriões”, diz o advogado civilista Marco Antonio Fanucchi. A tese de que Taciana tem direito ao implante acabou de ser informalmente ratificada no I Congresso Brasileiro de Direito Contratual.

“Se vale em alguns casos a manifestação oral no direito civil, é claro que vale o termo de consentimento, que é escrito, deixado pelo falecido” Mário Luiz Delgado, professor-doutor de direito civil (Crédito:GABRIEL REIS)

Assim, aqui termina, mas ainda sem terminar na Justiça, a história da pernambucana Taciana. Um dia ela se encerrará, também, junto à frieza dos calhamaços jurídicos. E então, nesse dia, do frio sairão, para o calor da vida, os seus dois embriões.