Uma eventual supressão do direito ao aborto, como indica um rascunho da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos vazado pela imprensa, representaria uma vitória para a direita religiosa após uma batalha de cinco décadas para incluir sua agenda na vida política do país.

No centro da “guerra cultural” sobre o feminismo, o racismo, o laicismo e os direitos LGBTQ, a campanha deslanchou quando os católicos conservadores e os protestantes evangélicos se uniram após o histórico caso Roe vs. Wade de 1973, que garantiu o direito ao aborto.

A aliança, inicialmente fraca diante do movimento social progressista, se converteu em uma gigante da política local e nacional nas décadas seguintes.

“Roe vs. Wade foi decidida há 50 anos, a direita respondeu e lançou de imediato uma massiva reação”, disse Katherine Franke, professora de direito na Universidade de Columbia.

– Prova de fogo –

Russell Moore, um veterano ativista cristão evangélico e teólogo do Christianity Today, lembra que o aborto não era um tema político partidário na década de 1970.

Na época, “muitos partidários de Roe assumiram que o movimento ‘pró-vida’ simplesmente desapareceria”, acrescentou.

Católicos e evangélicos criaram grupos de resistência como o “Maioria Moral” e “Conselho de Investigação Familiar” que divulgaram sua mensagem em igrejas de todo o país.

Muitos financiaram candidatos a cargos políticos que defendiam o “direito à vida”, como ficou conhecido o movimento contra o aborto que foi constantemente ampliando seu poder.

Quando Ronald Reagan chegou à presidência em 1981, o aborto já era considerado um tema central da política conservadora e uma prova de fogo para qualquer candidato republicano.

– Objetivo a longo prazo –

Os ativistas contra o aborto solidificaram assim sua força em Washington com o objetivo a longo prazo de ter seus próprios juízes na Suprema Corte.

“Desde o princípio, eles entenderam que o tema deveria ser tratado a partir do Poder Judiciário”, disse Moore.

Essencial para estes esforços foi Leonard Leo, um ex-secretário do juiz mais conservador da corte, Clarence Thomas, e figura antiaborto da corrente Opus Dei da Igreja Católica.

Segundo o Washington Post, na década de 2000, Leo teve grande influência na administração do presidente George W. Bush.

Em especial, liderou as campanhas para promover dos nomeações feitas por Bush à Suprema Corte: Samuel Alito (autor do resumo vazado) e John Roberts, presidente do alto tribunal, que supostamente apoia os três liberais da corte contrários a revogar a Roe vs. Wade.

Um contato-chave de Leo na Casa Branca de Bush foi Brett Kavanaugh, atualmente um dos cincos juízes que, segundo as reportagens, apoia a opinião de Alito.

– Vitória com Trump –

As pesquisas sempre mostraram que uma maioria significativa de americanos apoia o direito à interrupção voluntária da gravidez.

Mas em 2016, o movimento contra o aborto já era suficientemente poderoso para impulsionar a campanha presidencial de Donald Trump.

Sem ser particularmente religioso ou contrário ao aborto, Trump cortejou ativamente os líderes evangélicos e passou a condenar o procedimento.

Ele elegeu como vice o evangélico Mike Pence e anunciou uma “lista estrita” de nomeações para as vagas da Suprema Corte; proporcionada por Leo.

Na eleição de 2016, quase 80% dos evangélicos apoiaram Trump.

A recompensa foi clara: o magnata indicou três conservadores para o tribunal de nove membros, com o respaldo de Leo e sua rede.

O alto tribunal tem prazo até 30 de junho para se pronunciar.