O forte avanço da direita no Brasil está tirando da zona de conforto a geração de setentões que mergulhou na luta armada durante a ditadura militar. A motivação são os riscos claros embutidos no despertar dos bolsões extremistas que, derrotados em 1985 com o fim do regime militar, encabeçaram com seus remanescentes a tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023 e, mesmo contidos pela ação do Supremo Tribunal Federal, estão mais fortes do que nunca.

O recorte temporal das seis décadas que separam os anos de chumbo da nova realidade política foi feito na noite de terça- feira, em Brasília, por um dos líderes da geração de 1968, o ex-ministro José Dirceu, num evento com a participação de pouco mais de uma centena de velhos militantes de esquerda de diferentes partidos. “Nós derrotamos a direita no movimento estudantil durante a ditadura em 1968, mas agora perdemos para ela nas redes sociais”.

A autocrítica do ex-ministro da Casa Civil é um reconhecimento de que no vácuo deixado pela esquerda, que abandonou pelo caminho a tarefa de conscientizar politicamente a juventude, a direita tomou as ruas, dominou as novas tecnologias de comunicação com as massas e, mesmo tendo como método a destruição da democracia – com ataques sistemáticos contra a história, cultura, educação e a imprensa – formou uma nova e perigosa geração.

Sem contraponto, diz o ex-ministro, a nova direita foi sendo seduzida pelo discurso quase oculto e imperceptível às forças democráticas, de ideólogos como o filósofo Olavo de Carvalho, guru e referência dos grupos que gravitam em torno do ex-presidente Jair Bolsonaro.

“Onde foi que erramos?”, perguntou o educador Pedro Pontual, que foi parceiro de Paulo Freire e ajudou a fundar o Instituto Cajamar, escola de formação política ligada ao PT nos anos de 1990, de onde saíram dezenas de dirigentes que disputaram e venceram eleições.

Dirceu e colegas da geração 68 querem combater direita em outra universidade; entenda
Militantes que optaram pela luta armada contra a ditadura militar, aguardam, em 1969, para serem trocados pelo embaixador dos EUA

A reação da esquerda se dará através de um novo trabalho de formação política voltado para as novas gerações, tendo como retaguarda militantes dos partidos de esquerda, de movimentos sociais, entidades sindicais e estudantis preocupadas com o avanço do conservadorismo que hoje, diferente de outros momentos históricos, conseguiu se firmar como força política majoritária no Congresso Nacional e tem forte base social.

O ponto de união das esquerdas é a Universidade Popular (Unipop), lançada na terça-feira em evento que contou com cinco partidos (PSB, PT, PCdoB e PCO) e, entre entidades, CUT, MST e UNE, um conjunto suprapartidário que investirá na formação ideológica e política que pretende ir além do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

“Nós derrotamos a direita no movimento estudantil durante a ditadura em 1968, mas agora perdemos para ela nas redes sociais.”
Ex-ministro José Dirceu

Pontual diz que é necessário formar líderes com pensamento crítico, com visão progressista da sociedade e dentro de novos paradigmas. “Um trabalho de base, de longo prazo, com gente progressista e compromissada com a democracia, é um imperativo para deter a onda fascista que assola o Brasil e o mundo. Temos de ocupar novamente territórios que já foram nossos – como as ruas e que acabaram sendo tomadas porque parte da esquerda deixou de fazer o trabalho de base”.

Dirceu e colegas da geração 68 querem combater direita em outra universidade; entenda
(Saulo Cruz)

“A direita, com Jânio, Collor e Bolsonaro, teve vida curta. Ela diz que vai voltar. Vamos enfrentá-la.”
José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil

Renovação

Além de Dirceu e Pedro Pontual, vão participar dos cursos de formação ex-presos políticos na ditadura, como:
o ex-líder estudantil e ex-deputado Vladimir Palmeira,
o frei dominicano Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Beto,
o teólogo Leonardo Boff, um dos criadores das Comunidades Eclesiais de Base (Cebs) da Igreja Católica,
e o cineasta Silvio Tendler.

O coordenador da Unipop, Acilino Ribeiro, do PSB, diz que entre personalidades internacionais convidadas para um seminário que está sendo organizado para o próximo mês estão o linguista e filósofo Noam Chomski, o ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica e mulheres como a filha de Che Guevara, Aleida Guevara, a filósofa Ângela Davis e a biógrafa palestina Leila Khaled.

A ideia, segundo ele, é juntar experiências históricas que deram resultados positivos e personalidades progressistas para elaborar conteúdo pedagógico permanente que informe, instrua e conscientize a juventude sobre o papel político na renovação dos quadros que podem fazer a sociedade avançar, enfrentando o crescimento da extrema direita.

José Dirceu acha que é necessário apoiar e fortalecer o governo Lula que, com base frágil de sustentação no Congresso, vem sendo bombardeado pelo extremismo numa permanente tentativa de desestabilização. Ele acha que a alternativa que o governo tem para contornar o bolsonarismo é, emergencialmente, a instituição de um programa econômico de três eixos:
um novo processo de industrialização,
a ampliação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
e a transição ecológica, que pode dinamizar a geração de energia verde e renovável, uma das grandes vocações do país.

O presidente Lula já sinalizou que quer Dirceu de volta à política, mas o ex-ministro, que teria eleição fácil em São Paulo em eventual disputa por uma vaga à Câmara dos Deputados em 2026, não diz que sim nem que não.

Além disso, ainda tem pendências na justiça e aguarda decisão do STJ sobre recurso em que questiona a isenção do ex-juiz e senador Sérgio Moro e do ex-procurador da República Deltan Dallagnol no julgamento que o levou pela terceira vez à prisão, a última delas durante a Operação Lava Jato.

Os setentões de 68

• Acusado de corrupção, Dirceu havia sido preso no mensalão e, nos anos de chumbo, como líder estudantil no Congresso da UNE, em Ibiúna. Deixou a prisão rumo ao exílio a bordo de um avião Hércules C-56 da FAB, em 1969, como um dos 13 militantes de esquerda trocados pelo embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick, sequestrado à época por organizações da esquerda armada.

No mesmo grupo estavam também outros dois líderes estudantis, Luís Travassos, que faleceu em 1982, e Vladimir Palmeira, além de mais 10 presos políticos que, banidos pela ditadura, encontraram asilo no México, depois em Cuba e em países europeus.

Quando retornou clandestinamente ao Brasil, ainda no período da luta armada, para reorganizar a resistência à ditadura como militante do PCB/Molipo, treinado na “Ilha de Fidel Castro”, percebendo que seus companheiros tinham caído na armadilha e estavam sendo mortos um a um ao desembarcar no Brasil, Dirceu voltou a Cuba.

• Fez cirurgia plástica, retornou ao país e, com outra identidade, foi viver em Cruzeiro do Oeste, interior do Paraná, em 1975. Lá estabeleceu-se como o comerciante Carlos Eugênio Gouveia de Melo, casou com a também comerciante Clara Becker, de cuja relação nasceu José Carlos Becker de Oliveira e Silva, hoje deputado Zeca Dirceu, que até fevereiro foi líder do PT na Câmara.

No evento de lançamento da Unipop, um Dirceu amadurecido pelo tempo falou durante mais de uma hora sobre economia global, o Brasil e suas contradições, diante de uma plateia que não desgrudou os olhos. Disse que nunca imaginou ver a direita tão forte como a de hoje, gerando tensão permanente entre os poderes da República, mas aposta que ela terá vida curta, como nos governos de Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello que, frisa, da mesma forma como Bolsonaro, não produziram nada de relevante e deixaram o rastro de destruição, abrindo espaço para o extremismo de direita e o caos.

“Os direitos de justiça social vieram dos esforços de socialistas, dos comunistas e de parte dos democratas. A classe trabalhadora votou primeiro no PTB, no MDB e depois deu cinco mandatos ao PT”.

Dirceu diz que é necessário recontar o Brasil pela memória histórica e, como a direita tem dito que quer voltar a governar, acha, então, é hora de aceitar o desafio: “Vamos derrotá-la de novo”.

Dirceu conta que tem perdido o sono pensando na necessidade de uma revolução científica e cultural que dê ao Brasil a soberania necessária para se impor num mundo de guerras, tarefa que exige atenção prioritária e expertise nas novas tecnologias de comunicação, robótica e de avançado conhecimento em inteligência artificial.

Ele afirma que nunca houve na história republicana partidos de direita fortes, organizados e com o controle de espaços como os atuais, mas também nunca imaginou no mesmo período um Congresso Nacional com uma gravidade e níveis tão baixos.

Ele frisa que a esquerda também deve se utilizar das mesmas estratégias de ocupação, mas dentro da democracia, atuando em redes e usando as novas tecnologias. “Se eles fazem, também podemos fazer”. Como se vê, os setentões de 68 acham que têm algo a ensinar a quem quer entrar na política.