A desigualdade econômica no Brasil é tão velha quanto é velho o sonho dos pobres de ganhar um dinheirinho ao fazer fé em loterias – e, sonho mais antigo e mais barato ainda, é o sonho acalentado com a borboleta 13: o único contrato social respeitado nesse País desde João VI, no qual vale o escrito e nunca ninguém (leia-se banca, os donos do poder do jogo do bicho) ousou rasgar a anotação da aposta. Aqui, a cobertura de um é o porão de milhões. O fosso entre os estamentos (sim, estamos nos estamentos) é uma velha bruxa, e como toda bruxa teima em não morrer conforme aponta Câmara Cascudo ao se referir à pobreza em seus estudos sobre o folclore nacional. O número de pobres, triste e tragicamente (para os pobres, claro), sempre cresce, a ponto de termos no Brasil algo estatisticamente impensável: a medição de quem se torce e se contorce e se entorta abaixo da linha dos miseráveis. Na semana passada desabou a notícia mais desesperadora: em relação ao número de pobres, os ricos brasileiros compõem atualmente a mais elevada fatia dos endinheirados em todo o planeta. Sangra coração! Rasga coração!

A desigualdade de renda cresce, pelo décimo sétimo trimestre consecutivo, e assim se fez (conseguimos!) o mais longo ciclo desse desnivelamento na história brasileira. Isso consta do estudo “Escalada da Desigualdade”, elaborado pela FGV. Desde o início da crise econômica, o recuo da renda média acumulada foi de 3,71%, com efeitos somente agora mensurados: os pobres ficaram muito mais empobrecidos, empobreceram em nível maior do que a classe média — é mais ou menos assim, quem era roto virou rasgado e quem era rasgado está nu. Já os relativamente ricos enriqueceram um tantinho mais e os trilhardários conseguiram se fazer mais trilhardários ainda. Entre o helicóptero no céu e o pé descalço no inferno dos paralelepípedos, quem mais sofre e sofrerá no futuro são os jovens na faixa etária entre vinte e vinte e quatro anos. Claro que o tsunami do desemprego tem tudo a ver com isso, óbvio que também tudo tem a ver com isso o fato de a nossa Terra de Vera Cruz (desde o primeiro contrabalho de pau brasil promovido pelo senhor Fernando de Noronha, hoje nome de ilha de rico) possuir elites predatórias e autopredatórias: predatórias porque jamais tiveram diante de si um Terceiro Estado no modelo da Revolução Francesa; autopredatórias porque não enxergam que ao concentrarem riqueza nas mãos de tão poucos estão destruindo a si mesmas, uma vez que, se tal riqueza não servir para emprego e consumo, ela se esvai mas não vai para o caixão.

Mais números? Vamos lá: de 2014 a 2019, a metade mais pobre da população perdeu 17,1% de renda, e o 1% mais rico ganhou 10,1%. Seguimos, assim, sendo a “Belíndia”, País dividido entre a riqueza da Bélgica e a pobreza da Índia, na expressão do economista Edmar Bacha. Seguimos sendo o “Brasil: terra de contrastes”, clássica obra do sociólogo francês Roger Bastide que aqui esteve em 1938 como catedrático da USP. Seguimos a ser a terrinha na qual ocorre o fenômeno que o bom e nobre e generoso e genial poetinha, Vinicius de Moraes, um dia definiu: o fenômeno do “dinheiro de quem não dá é o trabalho de quem não tem”. E essa tal borboleta 13 da sorte, que parece só gostar de palacetes, já passou da hora de levar uma toalhada como o fez Brás Cubas com aquela que lhe assentou na testa para torná-lo ainda mais infeliz.


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