05/11/2021 - 9:30
Até o fim de 2019, os gastos totais da casa de Eduardo Vasconcelos, em São Paulo, onde vive com os pais, não passavam dos R$ 3,7 mil. Entravam nesse cálculo desde as contas básicas, como o aluguel e a eletricidade, até a mensalidade de um curso universitário que ele está prestes a terminar. O fato de a família não ter um automóvel ajuda, na medida em que a flutuação dos preços dos combustíveis não a atinge diretamente. Mas a pandemia e a atual crise econômica, que fez a inflação explodir, mudaram essa realidade. Enquanto a renda doméstica se manteve a mesma, a inflação acumulada de 10,25% apenas nos últimos 12 meses fez com que o custo mensal dessa família subisse para R$ 4,5 mil. Sem contar o aluguel, que os obrigou a mudar de casa no começo deste ano. “A imobiliária e o proprietário quiseram reajustar o valor do contrato pelo IGP-M completo”, revela Eduardo, citando o indexador de moradia, que subiu 24% ao longo do último ano. “Tivemos que ir para outra casa”, continua. Isso tudo apesar de, segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), a família de Eduardo se enquadrar naquelas cuja renda oriunda do trabalho por pessoa até subiu, ainda que timidamente, de 2019 para cá.
A realidade descrita acima afeta 70% dos trabalhadores brasileiros, segundo estudo encabeçado pelo economista Daniel Duque, da FGV. O salário que ganha hoje vale menos do que há dois anos, antes da chegada da Covid. Casas em que a renda do trabalho per capita era de R$ 357, por exemplo — realidade comum de boa parte da população —, viram o poder de compra se deteriorar em 7% nestes dois últimos anos. Agora, esse montante equivale a R$ 330. A pesquisa de Duque conclui que as camadas médias brasileiras tiveram, pela correção, uma queda de 28% nos seus rendimentos neste período. É uma realidade parecida à do colapso do governo Dilma, entre 2014 e 2017, marcado por uma forte recessão em meio a uma grave crise institucional. Só que o momento atual é ainda pior. “A inflação daqueles anos foi menos desigual do que a de agora”, observa ele. “Ali, o que puxou os preços para cima foram os serviços. Hoje, a alta é mais forte sobre itens básicos, como alimentos”, completa. Sem contar que, agora, a inflação também atinge mais produtos do que naquela época, afetando, assim, uma maior parcela das famílias brasileiras.
Esse cenário negativo, porém, não afetou a todos igualmente. Enquanto a renda da maior parte da população perdeu valor, os 10% mais ricos viram seus ganhos reais aumentarem em 8% de 2019 em diante. A explicação está no fato de o consumo alimentício impactar bem menos no bolso deles. A inflação tem, por consequência, menos poder de corrosão sobre seus rendimentos. “É o contrário do que aconteceu entre 2014 e 2017, quando os preços mais altos dos serviços afetaram essas pessoas com mais intensidade”, analisa Duque. Fora desse grupo, a elevação de mais de 40% só nos custos dos alimentos de janeiro de 2020 até hoje representa um peso gigantesco no orçamento do mês.
Há outro fator que pressiona esse cenário desfavorável: o desemprego, que atingiu em cheio as camadas médias urbanas. Com isso, muitas pessoas passaram a depender unicamente de uma renda extratrabalho, oferecida pelo governo por meio do auxílio emergencial ao longo da pandemia. Inicialmente no valor de R$ 600 em 2020, o benefício foi reduzido pela metade a partir de abril, e se encerrará neste mês. Com isso, cerca de 22 milhões de brasileiros serão jogados novamente na incerteza econômica. A informalidade torna esse quadro ainda mais complexo, diz o economista Paulo Gala, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). “Os dados de emprego ainda estão muito ruins, porque enquanto aumentou o número de trabalhadores ‘por conta própria’, os rendimentos reais caíram muito”, argumenta. Para o especialista, há hoje um contingente de 30 milhões de pessoas que desistiu de procurar emprego, está desemprego ou está trabalhando menos horas do que gostaria.
O panorama desfavorável explica a urgência com que o governo Bolsonaro tenta implantar o Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família. Para isso, o presidente pressionou o ministro Paulo Guedes para implodir o teto constitucional de gastos, risco que o mercado já precificou. Segundo o pesquisador do Ibre-FGV, o problema é que Bolsonaro quer dar com uma mão e tirar com a outra. “Como há muitas incertezas, o dólar sobe e a inflação permanece alta. Além de reajustar os valores dos programas de transferência de renda, é preciso também reduzir o risco fiscal”, diz. É justamente o contrário do que o presidente está praticando.