Até o fim de 2019, os gastos totais da casa de Eduardo Vasconcelos, em São Paulo, onde vive com os pais, não passavam dos R$ 3,7 mil. Entravam nesse cálculo desde as contas básicas, como o aluguel e a eletricidade, até a mensalidade de um curso universitário que ele está prestes a terminar. O fato de a família não ter um automóvel ajuda, na medida em que a flutuação dos preços dos combustíveis não a atinge diretamente. Mas a pandemia e a atual crise econômica, que fez a inflação explodir, mudaram essa realidade. Enquanto a renda doméstica se manteve a mesma, a inflação acumulada de 10,25% apenas nos últimos 12 meses fez com que o custo mensal dessa família subisse para R$ 4,5 mil. Sem contar o aluguel, que os obrigou a mudar de casa no começo deste ano. “A imobiliária e o proprietário quiseram reajustar o valor do contrato pelo IGP-M completo”, revela Eduardo, citando o indexador de moradia, que subiu 24% ao longo do último ano. “Tivemos que ir para outra casa”, continua. Isso tudo apesar de, segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV), a família de Eduardo se enquadrar naquelas cuja renda oriunda do trabalho por pessoa até subiu, ainda que timidamente, de 2019 para cá.

A realidade descrita acima afeta 70% dos trabalhadores brasileiros, segundo estudo encabeçado pelo economista Daniel Duque, da FGV. O salário que ganha hoje vale menos do que há dois anos, antes da chegada da Covid. Casas em que a renda do trabalho per capita era de R$ 357, por exemplo — realidade comum de boa parte da população —, viram o poder de compra se deteriorar em 7% nestes dois últimos anos. Agora, esse montante equivale a R$ 330. A pesquisa de Duque conclui que as camadas médias brasileiras tiveram, pela correção, uma queda de 28% nos seus rendimentos neste período. É uma realidade parecida à do colapso do governo Dilma, entre 2014 e 2017, marcado por uma forte recessão em meio a uma grave crise institucional. Só que o momento atual é ainda pior. “A inflação daqueles anos foi menos desigual do que a de agora”, observa ele. “Ali, o que puxou os preços para cima foram os serviços. Hoje, a alta é mais forte sobre itens básicos, como alimentos”, completa. Sem contar que, agora, a inflação também atinge mais produtos do que naquela época, afetando, assim, uma maior parcela das famílias brasileiras.

“Inflação de agora é mais desigual que a do governo Dilma” Daniel Duque, pesquisador do Ibre-FGV (Crédito:Marcelo Freire)

Esse cenário negativo, porém, não afetou a todos igualmente. Enquanto a renda da maior parte da população perdeu valor, os 10% mais ricos viram seus ganhos reais aumentarem em 8% de 2019 em diante. A explicação está no fato de o consumo alimentício impactar bem menos no bolso deles. A inflação tem, por consequência, menos poder de corrosão sobre seus rendimentos. “É o contrário do que aconteceu entre 2014 e 2017, quando os preços mais altos dos serviços afetaram essas pessoas com mais intensidade”, analisa Duque. Fora desse grupo, a elevação de mais de 40% só nos custos dos alimentos de janeiro de 2020 até hoje representa um peso gigantesco no orçamento do mês.

Há outro fator que pressiona esse cenário desfavorável: o desemprego, que atingiu em cheio as camadas médias urbanas. Com isso, muitas pessoas passaram a depender unicamente de uma renda extratrabalho, oferecida pelo governo por meio do auxílio emergencial ao longo da pandemia. Inicialmente no valor de R$ 600 em 2020, o benefício foi reduzido pela metade a partir de abril, e se encerrará neste mês. Com isso, cerca de 22 milhões de brasileiros serão jogados novamente na incerteza econômica. A informalidade torna esse quadro ainda mais complexo, diz o economista Paulo Gala, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP). “Os dados de emprego ainda estão muito ruins, porque enquanto aumentou o número de trabalhadores ‘por conta própria’, os rendimentos reais caíram muito”, argumenta. Para o especialista, há hoje um contingente de 30 milhões de pessoas que desistiu de procurar emprego, está desemprego ou está trabalhando menos horas do que gostaria.

MAIS CARO Na casa de Eduardo, as despesas aumentaram neste ano (Crédito:Marco Ankosqui)

O panorama desfavorável explica a urgência com que o governo Bolsonaro tenta implantar o Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família. Para isso, o presidente pressionou o ministro Paulo Guedes para implodir o teto constitucional de gastos, risco que o mercado já precificou. Segundo o pesquisador do Ibre-FGV, o problema é que Bolsonaro quer dar com uma mão e tirar com a outra. “Como há muitas incertezas, o dólar sobe e a inflação permanece alta. Além de reajustar os valores dos programas de transferência de renda, é preciso também reduzir o risco fiscal”, diz. É justamente o contrário do que o presidente está praticando.