Bem que Machado de Assis, solitário e cético bruxo da nossa vocação republicana, escreveu em um de seus contos: “quer sujar-se? Suje-se gordo”.

Zulmira sujava-se magro.

Moça nova com a cara de velha que a fome deixa, ela já morreu – “subiu”, como costumava dizer apontando o dedo para céu, quando se referia a alguém falecido. Zulmira “subiu” com duas balas no corpo depois de passar algum tempo na cadeia porque vivia se sujando muito magro, raquiticamente até: furtava carteiras numa movimentada estação de trem da periferia de São Paulo, e dividia o dinheiro entre a cachaça que tomava e o Miojo que cozinhava para os três filhos. Quando foi detida não tinha ninguém para cuidar das crianças (o marido estava preso por roubo e tráfico), e elas ficaram então sob os cuidados das ruas, do sol e do vento, da chuva e do frio, da fome e dos semáforos, dos vidros elétricos dos carros que os motoristas lhes subiam na fuça, ficaram sob os cuidados das pancadas da polícia – um dos rebentos sumiu bebendo enxurrada. Eu conheci Zulmira, não a gurizada. Certa vez ela pediu ao juiz que a soltasse porque os filhos estavam “largados”, “só por Deus”. E fez-se o não.

Não conheço Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral, mas sei, pelo que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal asseguram, que ela sujava-se gordo – e era ouro, e eram diamantes que lavaram seis milhões de reais (ah, a bijuteria de um e noventa e nove na orelha de Zulmira), e era grana de propina e do erário, e era par de brincos de dois milhões… sim, era gordo, era gordo. O casal está preso no complexo penitenciário de Bangu sob a acusação de corrupção, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e organização criminosa, mas ainda assim, apesar da suspeição de ter promovido uma das maiores rapinagens do Brasil, a Justiça dera à Adriana o direito de permanecer em casa para que seus dois filhos pré-adolescentes não ficassem privados, física e emocionalmente, do acompanhamento de um dos pais. O MPF recorreu dessa decisão, o Tribunal Regional Federal a reconsiderou, e Adriana segue onde tem de estar: atrás das grades. Sequer chegou a sair da cela de seis metros quadrados em Bangu e voltar ao apartamento de setecentos metros no Leblon. A boca do estômago de seus filhos jamais iria cobrar o que a boca do rosto não andava comendo, eles não iriam zanzar pelas ruas dos subúrbios, eles não subiriam os morros em situação de risco. É claro que a todas as crianças, paridas de barriga pobre ou nascidas de ventre rico, cabe a nossa compaixão diante da dor psíquica de ter os pais encarcerados. Não desejo isso a nenhuma delas. Mas é curioso que quando escrevo “todas as crianças”, é curioso que é justamente nesse ponto que me vem a voz de Zulmira soprar: por que dona Adriana pode? E nós? E as mulheres presidiárias que são, como eu fui, por que não?

Adriana continua presa, mas só o fato de ter ganho (ainda que não tenha levado) a prisão domiciliar já é estarrecedor frente a igualdade de direitos apregoada pela Constituição. O sangramento do princípio da isonomia se fez, e é hemorragia que não estanca fácil não. Adriana tem de ser exceção entre as outras mulheres que também possuem prole até doze anos de idade e também estão presas provisoriamente (quarenta e dois por cento de um total de quarenta mil)? Se a todas que se acham em tal condição a lei faculta a detenção domiciliar, por que estão em penitenciárias? Os juízes geralmente negam tal benefício, alegando que não há agentes públicos para fiscalizar o cumprimento da medida. Na verdade, não há mesmo, mas isso é um problema do Estado, jamais poderia ter-se ensaiado como um privilégio para Adriana Ancelmo.

Abra-se a palavra aos operadores do Direito, mas um ponto eu quero registrar: em relação a tantas mulheres tão-tristes e tão-pobres, tão-mães e tão-presas porque sujaram-se magro, sequer há um levantamento estatístico de quantas poderiam ir de volta para casa. E foi exatamente sobre privilégios, foi citando textualmente o risco da quebra da isonomia, que a determinação do Tribunal trancou novamente a cela de Adriana. Mostrou que não vale a pena sujar-se gordo nem sujar-se magro. Até o cético Machado veria nisso uma esperança, a esperança de que a equidade da lei não tenha mesmo, definitivamente, tomado o elevador, apertado o botão da cobertura e lá esteja aboletada a escarnecer do primeiro andar.

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Presidiárias não podem receber da Justiça tratamento diferenciado, seja em relação aos filhos ou a qualquer outro aspecto de suas vidas. A regra  republicana é que todas são iguais perante a lei

 


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