É ele, é ele! Consegui uma foto do Ousado – comemorei sussurando, mas a alegria deu lugar ao desapontamento ao constatar que a foto distante, da onça de costas fugindo de nós, não era suficiente para o biólogo Fernando Tortato avaliar a condição de saúde do jovem macho.
Era dezembro de 2020, as chuvas haviam chegado ao Pantanal e as estradas enlameadas, os campos alagados e a nuvem de mosquitos davam total vantagem a onça em seu território. Havia uma semana que Fernando, eu, o cinegrafista Diego Rinaldi e meu filho Lorenzo, por vezes auxiliados pelo veterinário Rafael Hoogesteijn, usávamos todos os meios de transporte em busca de uma imagem de Ousado. Jeep 4×4, quadriciclo, barco, cavalo e até a pé…Não era apenas procurar uma agulha num palheiro. O “palheiro” estava alagado, com mata fechada e a “agulha” era o maior felino do Brasil, completamente adaptado a seu território e decidido a não mais encontrar seres humanos.
Para quem não lembra, Ousado é o nome de uma onça resgatada no ano passado com queimaduras graves nas patas no Parque Estadual Encontro das Águas no Pantanal do Mato Grosso justamente num 11 de setembro. Seu resgate envolveu moradores locais, imprensa, ONGs, voluntários, órgãos federais e estaduais. Foi um raro momento em que todos se uniram num país dividido e esse resgate foi o maior exemplo de que tudo poderia ter sido diferente no combate aos piores incêndios florestais da história do Pantanal.
Resgatado de helicóptero, o predador ferido foi levado ao NEX – No Extinction, criadouro conservacionista localizado em Corumbá de Goiás, a menos de duas horas de carro de Brasília. Lá ele foi tratado pelo veterinário Thiago Luczinski e sua equipe, que utilizaram tecnologias veterinárias pioneiras como injeção de células tronco, ozônio-terapia e pomadas homeopáticas que cicatrizaram as graves feridas. Estive no NEX durante o tratamento e testemunhei a emoção dos veterinários quando o poderoso felino agarrou um pedaço de carne com as patas, utilizando as garras. Ousado acabara de receber alta e uma operação complexa foi organizada para leva-lo ao mesmo local onde havia sido capturado para ser solto.

No dia 20 de outubro, apenas 40 dias após o resgate, uma van estacionou no Porto Jofre, no fim da rodovia Transpantaneira. A bordo Thiago e uma gaiola com o poderoso predador. A sua volta estavam veterinários, voluntários, biólogos, bombeiros, guias de turismo e servidores públicos de várias instituições… Infelizmente apesar de ter sido convidado e estar no Pantanal, perdi a “festa”, pois um foco de incêndio no Parque Nacional fez que eu, único cinegrafista profissional na região naquele dia, abandonasse o Porto Jofre e fosse acompanhar uma equipe do Prevfogo ICMBio que continuava lutando contra os incêndios.
Antes da soltura os veterinários colocaram um rádio colar em Ousado, que emite um sinal de GPS com sua posição, sinal esse recebido numa central nos EUA e repassado diariamente para Fernando. O problema é que recebíamos a localização da onça com um delay de 3 horas e acreditem, uma onça pode andar muito em 3 hs! Há também um transmissor de curto alcance no colar, cujo receptor Fernando carregava consigo. Quando cheguei ao Pantanal dia 4/12, apesar do receptor e de receber a localização, Fernando não havia avistado Ousado. O pesquisador havia encontrado carcaças de presas e fezes frescas, que indicavam que o animal estava se alimentando, mas era muito importante vê-lo, e se possível fotografa-lo, para ter certeza de que ele estava bem. A esperança de Ousado se adaptar bem de volta a natureza era aumentada pelo fato de que Amanaci, a outra onça resgatada tratada no NEX, ter tido queimaduras tão graves que a impossibilitam de expor as garras e portanto caçar ou se defender. Por isso Amanaci terá de passar o resto da vida em cativeiro. Ousado seria uma grande vitória numa guerra de muitas derrotas.

Nos 10 dias que ficamos feito loucos atrás de Ousado chegamos a estar a 5 metros dele, que rosnou na mata fechada e correu. O único momento que conseguimos visualiza-lo foi por menos de 5 segundo e consegui essa foto tosca, que mesmo assim pareceu uma vitória para Fernando: “Esse é o mundo do Ousado, ele teve uma experiência ruim com humanos, foi capturado, vai fazer de tudo para nos evitar, esse breve encontro foi muita sorte, mas nossa única chance de documentá-lo é vê-lo descansando de barriga cheia na beira do rio”. Fernando não imaginava que suas palavras eram proféticas.
Em janeiro de 2021 voltei ao Porto Jofre e parti mais uma vez com Fernando atrás do Ousado… se quiserem mais detalhes da busca recomendo que assistam meu filme “Jaguaretê-Avá, Pantanal em Chamas” que estreiou hoje, 12/11, dia do Pantanal, no Globoplay. De qualquer modo mando um spoiler: achamos Ousado na barranca do rio, descansando de barriga cheia.

Ousado acasalando
De lá para cá voltei ao Pantanal mais 5 vezes, passando 9 semanas e meia (de amor, porque não?) com as onças e tive o privilégio de avistar Ousado mais meia dúzia de vezes, inclusive acasalando. Nesse dia eu estava lado a lado com o veterinário Jorge Salomão da ONG Ampara Silvestre, que capturou o animal ferido. Jorge e eu não seguramos as lágrimas!
Hoje é celebrado o Dia do Pantanal, data criada em 12 de novembro de 2008 por resolução do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) em homenagem à morte do ambientalista Francisco Anselmo de Barros, o Francelmo, que ocorreu nessa data em 2005 quando ele ateou fogo ao próprio corpo em protesto contra um projeto de lei que previa a implantação de usinas de álcool e açúcar no Pantanal.

Ousado no NEX – No Extintion
Após os incêndios recorde de 2020 e a pior seca dos últimos 47 anos em 2021, o Pantanal não tem muito o que celebrar. Fantasmas do passado, como decreto presidencial que permite plantio de cana nas cabeceiras, projeto de construção de dezenas de pequenas centrais hidrelétricas, projeto de construção de hidrovia no rio Paraguai, caça ilegal, pesca desregulada, atropelamento de animais, projeto de asfaltamento da rodovia Transpantaneira, nos mostram que o Brasil decididamente é hoje um país que não dá importância a seu maior bem: A natureza!
Mesmo assim, pequenas vitórias como a história do Ousado, nos motivam a acreditar num futuro melhor para nosso país como um todo e o Pantanal em particular.