Prevista na lei, análise ainda não está garantida. Pesquisadores temem que discussões em ano eleitoral levem a retrocessos e afirmam que, enquanto oportunidades para brancos e negros forem desiguais, cotas devem existir.A Lei de Cotas completa dez anos em 2022. A própria legislação define que a política de ação afirmativa criada para tentar dirimir as desigualdades do ensino superior do Brasil deveria ser revista neste ano, e possíveis modificações preocupam defensores da medida.

Instituída no governo Dilma Rousseff (PT), a Lei 12.711, de agosto de 2012, prevê que 50% das vagas de universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia devem ser destinadas a alunos que cursaram o ensino médio integralmente na rede pública. Dessas, pelo menos a metade deve ser ocupada por estudantes cuja família tenha renda per capita inferior a 1,5 salário mínimo. Também há vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas, de acordo com o tamanho dessas populações no estado onde fica a instituição de ensino.

Originalmente, a legislação previa que a revisão seria feita dez anos depois pelo Poder Executivo, mas uma alteração em 2016 retirou essa competência. Não ficou definido, no entanto, quem será o responsável pela análise da política. Além disso, o texto também não diz como a revisão deve ser feita e quais poderiam ser as consequências da avaliação para a Lei de Cotas.

O que se sabe é que, caso a revisão não seja feita, a lei segue vigorando. Esse entendimento foi corroborado por uma comissão de juristas da Câmara dos Deputados em novembro do ano passado. Especialistas ouvidos pela DW Brasil, no entanto, manifestam preocupação sobre o futuro da medida.

“Esse é um trabalho que o governo federal não tem condições de fazer nesse momento”, avalia Márcia Lima, professora de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do núcleo de pesquisa para questões raciais do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Ela diz que não há condição “técnica e moral” no governo para fazer a avaliação da lei. “E não existe a obrigatoriedade da revisão. A lei não vai expirar caso não seja avaliada. Acredito que deveríamos esperar. É um ano eleitoral complicado, e temos um Congresso conservador que pode colocar tudo a perder”, complementa a pesquisadora.

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“A extensão da lei por mais algumas décadas é bem-vinda, sobretudo porque simplifica um debate já delicado em um ano eleitoral conturbado. Tentar remodelar a lei nesse contexto pode levar a regressões ainda mais dramáticas”, avalia Luiz Augusto Campos, professor de Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj).

Apesar de ser uma universidade estadual, a Uerj tem um papel importante na história da política de cotas no país. A instituição foi a primeira de grande porte a introduzir a medida, ainda em 2002.

Dados para fortalecer o debate

Lima e Campos são coordenadores do Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas 2022, que tem como objetivo defender a política de ação afirmativa com dados em um momento de possíveis ataques à legislação. Participam do grupo pesquisadores de diversas universidades do país, como a Universidade Federal da Bahia (UFBA) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A busca por dados entre os pesquisadores não é tarefa fácil. “Não houve um acúmulo do governo federal nesse sentido”, diz a pesquisadora.

Alguns números, no entanto, já são conhecidos. Pretos e pardos somavam 30% das matrículas em 2001 e hoje são mais de 50% do corpo discente nas universidades e institutos federais. Estudantes provenientes dos 20% mais ricos do Brasil eram 69% dos matriculados no ensino superior, e hoje somam menos de 40%.

“Nós achamos que o debate nesses primeiros dez anos ficou muito ensaístico e opinativo. Queremos entender não só a dinâmica de entrada na universidade, que é fundamental, mas também a continuidade desse aluno dentro do ambiente de ensino superior público”, diz Lima.

“As informações que captamos até agora sugerem que os cotistas conseguem ter um desempenho acadêmico similar ao dos não cotistas”, complementa Campos.

A percepção já foi corroborada por um levantamento do Insper, publicado em 2016, que mostrou uma performance satisfatória dos alunos cotistas em relação aos não cotistas.

Outro estudo, este publicado há dois anos pela pesquisadora Ursula Mello, do Institute for Economic Analysis, de Barcelona, em parceria com Adriano Senkevics, pesquisador em educação na USP, mostrou que de 2012 a 2016 a participação de jovens de 18 a 24 anos pretos, pardos e indígenas e de baixa renda em universidades federais passou de 33,9% para 42,7% dos ingressantes.

Ainda assim, Campos ressalta que há um gargalo quando se busca um detalhamento maior acerca do desempenho dos alunos. “As agências estatais responsáveis enfrentam muitas dificuldades na divulgação desses números e não há integração entre as bases do Sisu [Sistema de Seleção Unificada], do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], das matrículas nas universidades. É preciso pensar num sistema unificado de dados educacionais para o ensino superior, só com ele podemos avaliar com mais sofisticação o sucesso da lei de cotas.”


Entraves e avanços

Segundo Campos, a Lei de Cotas tem “problemas pontuais”, mas que não impedem sua continuidade. Para ele, o conceito de “estudante de baixa renda” como quem vem de uma família com renda inferior a 1,5 salário mínimo per capita é “elástico” e tem significados diferentes dependendo da região do país.

“Além disso, a ausência de uma cota específica para indígenas, incluídos nas cotas para pretos e pardos, também prejudica a inclusão desse grupo”, ressalta o pesquisador da Uerj.

Para Lima, um dos pontos principais é a falta de uma política de permanência que envolva também as cotas raciais utilizadas para o ingresso do aluno na universidade. Cursos que exigem dedicação integral, como a Medicina, ainda são um entrave para estudantes que, por exemplo, precisam trabalhar.

A pesquisa de Ursula Mello e Adriano Senkevics mostrou, no entanto, que a lei tem alterado o perfil dos cursos mais disputados do país, como Medicina, Direito e Engenharia Elétrica. A presença de alunos não brancos, de baixa renda e oriundos da escola pública ficava entre 10% e 20% dos ingressantes em 2012. Quatro anos depois, o número havia dobrado (de 20% a 40%).

Apesar dos percalços, Lima considera a lei de cotas um sucesso. “Ainda que seja um modelo que precisa de aperfeiçoamento, vimos que pessoas que nunca acreditaram ser possível cursar uma universidade conseguiram entrar no ensino federal. Em um país racista como o Brasil, isso vale muito”, afirma Lima

“O objetivo das cotas não é apenas diversificar o ensino superior, mas dar condições para que os grupos discriminados possam competir em igualdade no mercado de trabalho. Enquanto houver fortes desigualdades de oportunidades entre brancos e negros no Brasil, as cotas devem continuar existindo”, salienta Campos.

O que dizem críticos

No início dos anos 2000, quando a inserção da Lei de Cotas em universidades federais ganhou força no Brasil, o debate em torno da proposta ganhou enorme proporção. Artistas, intelectuais, políticos e ativistas se posicionaram a favor e contra a medida. Para os críticos, as cotas acentuam ainda mais o racismo no país ao dividir a sociedade brasileira entre brancos e negros.

“As cotas raciais introduziram, como um rastilho de pólvora, o que hoje vemos como clarão de cores fortes. Um país dividido em negros e brancos na lei. As identidades antes fluídas e permitindo que o indivíduo se pensasse como branco, mestiço, pardo ou negro, foram transformadas em identidades fixas e intransponíveis”, afirma Yvonne Maggie, antropóloga e professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Para ela, o mais indicado seria o investimento no ensino médio, antes mesmo da chegada dos alunos ao ensino superior. Além disso, ela aposta na ideia de que bastavam as cotas sociais para que negros e pardos fossem beneficiados com a medida. “Não precisaria enfatizar a 'raça' e, com isso, constranger os candidatos ao escrutínio de Tribunais Raciais”, em referência às comissões de heteroidentificação racial para acesso a universidades.

Outro crítico da lei, o professor Peter Fry, também da UFRJ, faz coro às propostas de Maggie. “Uma campanha realmente essencial para dirimir as desigualdades de toda ordem seria colocar recursos, o que as cotas não fazem, em educação de qualidade nas áreas mais pobres do país. Ao mesmo tempo desenvolver projetos para incentivar a escolarização dos jovens. Tarefa difícil”, opina Fry.

Lima não acredita que o debate sobre as cotas deva permanecer no binômio racial-social, como aconteceu há duas décadas. Ela diz ainda que o problema com a política de inclusão tem a ver com o privilégio de pessoas brancas no acesso às universidades públicas. “Quase 80% do ensino superior no Brasil é privado. Ensino superior público neste país é para a elite. Por isso as cotas são tão visadas”, afirmou.

Sem uma definição do que pode acontecer ainda em 2022 quanto à possível análise da Lei de Cotas, o deputado Bira do Pindaré (PSB-MA) criou um projeto de lei que altera a revisão da lei para 2042. A proposta ainda precisa ser analisada por algumas comissões da Câmara, como as da Constituição e Justiça, Direitos Humanos e Minorias, de Educação, entre outras.


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