A distopia é o contrário da utopia. É um lugar imaginário e obscuro em que regimes despóticos exercem seu poder para deixar as pessoas sem liberdades, ignorantes e privadas de direitos fundamentais. O escritor Ignácio de Loyola Brandão, 82, que acaba de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL), é um mestre das distopias. No ano passado, ele lançou o livro “Desta terra nada vai Sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela”, uma ficção que transcorre num futuro indeterminado onde as pessoas, assim que nascem, ganham tornozeleiras eletrônicas e passam a ser seguidas e vigiadas por câmeras instaladas nas casas, nas ruas e banheiros. Em 1981, já havia lançado o romance “Não verás país nenhum”, passado em um país fictício governado, no começo do século 21, por uma entidade chamada Esquema — “essa coisa abstrata que consegue se manter em meio à anarquia, ao caos estabelecido como ordem, à anomalia mascarada de progresso”. Os dois livros dialogam com a realidade atual, em que se insinua um governo populista autoritário. “Corro na frente da realidade”, disse Loyola à ISTOÉ. “E a realidade é tão absurda hoje que só resta fazer um livro distópico”.

Seu mais novo romance é um livro distópico. O momento pede isso?

O último livro é um documentário sobre o futuro do Brasil. Pode ser que as coisas caminhem para isso. Em 1981 escrevi “Não Verás País Nenhum”, que, na época, acharam um absurdo. Está tudo acontecendo agora.

Acabou sendo meio profético.

A imaginação correu na frente da realidade. Eu corro na frente da realidade. A realidade é tão absurda hoje que não dá para fazer um livro realista, então você tem que fazer uma metáfora, tem que fazer um livro distópico, trabalhar com a ficção e a fantasia.

A realidade de hoje dialoga com esses livros?

Quem vai dizer isso são os críticos, os leitores e os ensaístas. Eu só escrevo. E ponho ali. Agora eles têm que comparar para ver até que ponto é isso ou aquilo.

Onde você vê o absurdo da realidade?

Um presidente que não governa, eleito para governar e não governa, um presidente que é governado à distância por um guru absurdamente maluco, um presidente que tem um filho que é presidente. Na verdade, o presidente hoje se chama Carlos Bolsonaro. Os filhos é que mandam no governo. É um homem completamente despreparado e que até hoje não tomou uma atitude concreta de modificação das coisas. Em 82 anos de vida nunca vi um governo deste, inexistente, que vai e que volta, que vai e que volta. É muito louco.

Teme pelo futuro?

O meu futuro é agora. Eu não sei mais se tem um futuro. O futuro nós já estamos vivendo, o futuro é o que está aí. Tenho medo da censura voltar porque já tiveram várias ameaças, como essa do Toffoli e do Alexandre de Moraes. Mas houve uma reação. Isso é positivo. E houve um recuo diante da indignação. O que a gente não pode perder é a indignação contra essa loucura que está aí. Como escritor, a vida inteira fui indignado e vou continuar sendo. Tive um livro proibido. As pessoas dizem que foi só um livro. Levou dez anos da minha vida. E o “Zero” não tem uma palavra inventada. Tudo que o censor proibia eu guardava – na época era editor da Última Hora. O livro foi construído com o material que não pode ser publicado.

A censura é uma perversão?

Faz parte do poder totalitário. Calando a boca das pessoas, você as proíbe de ter opinião, de ver, de assistir, de ouvir. A censura é o braço direito do governo totalitário. Querem, por exemplo, mudar os livros de história, mudar a história do Brasil.

Você falou do Olavo de Carvalho, o que você acha dele?

Não falei do Olavo de Carvalho, falei de uma pessoa que está nos Estados Unidos, que é astrólogo, astrônomo, sei lá, e que manda no que deve ser feito aqui. Como é que nós estamos sendo governados à distância, meu Deus?

Você acha ele está mandando mais que o presidente?

Está porque os filhos mandam no presidente e ele manda nos filhos.

Os militares estão lá numa boa, mais ou menos quietos. Gostaria aqui de roubar uma frase da Fernanda Torres em uma de suas crônicas na Folha. Certa vez, ela terminou o texto assim: “Quem diria que um dia iríamos elogiar e depositar esperanças no Mourão?”. Nunca vi. Nem o Hélio Jaguaribe, nem o Darcy Ribeiro, nem o Celso Furtado, que foram alguns dos nossos grandes observadores, entenderiam alguma coisa.

Não dá para entender nada?

Não. Por isso meu livro começa com um frase do Euclides da Cunha. A anormalidade virou realidade. O Euclides da Cunha olhando para Canudos e vendo a barbárie que foi cometida, disse “não, isso é anormal”. Só que o anormal era o normal. Nós estamos vivendo a anormalidade como normalidade. Um presidente que demite um cara que multou ele dez anos atrás. E a economia, a educação, a cultura e a saúde? Não, ele está lá andando de moto sem capacete, dando exemplo para o País. Que presidente é esse que não tem noção nenhuma do que é o cargo, não tem compostura.

E a cultura? Tem várias iniciativas destrutivas.

Lembro muito de uma frase do Goebbels, Ministro da Cultura e da Comunicação de Hitler, que dizia: quando ouço falar em cultura puxo meu revólver. Já puxaram o revólver. Eles têm aversão à cultura porque não tem cultura nenhuma.

Você acaba de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras. Qual é a importância disso na sua vida?

Por anos fui indiferente à Academia. Tanto que por quatro ou cinco vezes recusei-me a me candidatar. Até que percebi que a Academia poderia dar força a movimentos de resistência cultural, fazendo oposição à censura, que ameaça retornar, criando programas de formação de leitores e dando sugestões em projetos educacionais. Tem gente de peso para isso. Não esqueço que, em 1977, no manifesto contra a censura no governo militar, primeiro movimento a enfrentar o rolo compressor, teve assinaturas da totalidade da Academia. A Academia é um espaço a mais para nos defendermos se tempos ruins chegarem, como se prenuncia com a política ideologizante, com Deus acima de tudo, até sentado no galho de uma goiabeira, a revisão da história e a total submissão aos EUA.

E essa crise no mercado editorial está te afetando?

As livrarias entraram numa onda de gigantismo e não perceberam que o mundo digital estava vindo. Os leitores modificaram hábitos e costumes e a coisa explodiu, virou uma bolha. Se as livrarias explodem, explodem os editores. E junto com os editores, os escritores. Agora é o momento em tudo precisa ser reequacionado. O sistema antigo de vender livros mudou.

Você é um grande vendedor de livros?

Não, não sou. Vendi livros nos anos 80 muito, 90 muito e 2000 muito e hoje eu não estou mais naquele pique anterior. Nunca vivi só de livros, vivi de jornalismo e de projetos institucionais. Vendia bastante, mas não o suficiente.

E quais são suas expectativas para o novo livro.

Está caminhando, mas meus livros começam às vezes lentamente, às vezes ignorados e depois são descobertos. Tenho a sensação de que o “Dessa terra…” começa a ser descoberto. É um livro profundamente irônico. E o mais louco que já fiz.

Louco por quê?

Porque inventei o que quis. O máximo do absurdo, do surrealismo, de tudo que você pode imaginar. E o cara vai dizer que é possível, que tudo é possível acontecer. Tem um momento no livro em que os ministros do STF derretem. É o que está acontecendo: o Supremo derrete, está desnorteado. Que imagem a gente tem do STF hoje? A pior possível. Um dia a sessão é transmitida e o público começa a ver os ministros virarem uma meleca.

Todo mundo no livro usa tornozeleiras eletrônicas.

Quando nasce, o indivíduo recebe uma tornozeleira. É como se já nascesse culpado.

E seguido, vigiado…

Isso nós já somos o tempo inteiro. Esse mundo digital é uma coisa maluca porque nós estamos desprotegidos, vigiados o tempo inteiro, todo mundo sabe da minha vida, da sua e de tudo. O Facebook é uma coisa do mal, o Whatsapp também. E não estou falando isso catolicamente. É uma coisa que serviu para nos deixar desconfiados e com medo o tempo inteiro. Estamos sendo usados. E isso não é algo desse governo ou do outro, é do mundo.

No seu livro, o impeachment também é um assunto.

Você tem a indústria do impeachment, onde todos lucram. Você tem 143 impeachments. Vamos fazer um impeachment, porque aí você ganha um dinheiro, você vende seu voto a favor ou contra e vira uma indústria tão grande que tem ações na bolsa. Eu brinco com essa loucura toda, mas ela é real.

Você não usa redes sociais?

Não. Meu celular é para falar. Eu não quero ser encontrado.

É uma forma de se defender desse mundo hostil?

Não tem privacidade. Sabe que um dia eu estava viajando de ônibus, estava voltando de Araraquara, entrei num destes postos de entrada e sentei no banheiro. Quando olhei para cima tinha uma câmara me focalizando. Eu fazendo uma das coisas mais íntimas e tem uma câmara que eu não sei para onde estava mandando essa imagem.

Você acha que a mídia social ameaça a democracia?

Pode ameaçar. Pode ameaçar, depende de como ela é usada, e não acho que esteja sendo usada adequadamente.

Bolsonaro governa pelas mídias sociais?

Governa pelas mídias sociais. E não faz nada que desagrade seus seguidores mesmo que esteja indo contra os direitos de outras pessoas. O direito é uma coisa que está sendo desprezada. Você não pode mais ter opinião. Você dá uma opinião e recebe ataques de um milhão de pessoas contra você. Você pode ser agredido na rua. Nunca vi as pessoas com tanto medo.

Há muito ódio na sociedade?

Com certeza. E esse clima de ódio foi instalado pelo PT. Houve uma polarização: nós e eles. Está errado. É tudo nós. Não tem o eles. Somos todos brasileiros. E estamos divididos. Acentuou-se essa coisa de ódio, de inimigo. Nem na ditadura vi algo assim.