Grande intérprete do processo de formação do Brasil atual, o historiador José Murilo de Carvalho, que morreu neste domingo, 13, aos 83 anos, via com pessimismo os rumos tomados pelo País. Em entrevistas ao Estadão, o imortal da Academia Brasileira de Letras apontava que as aspirações de grandeza do País não saíram dos sonhos e também destacava a destruição das nossas riquezas naturais.

Além disso, o pesquisador, que deu aula em vários países, enxergava com ceticismo a capacidade de o País se livrar da armadilha da tutela na relação entre militares e civis e apontava o Brasil como uma nação incompleta. “A República brasileira ainda está por nascer, se vai nascer algum dia.”

Sobre um Brasil ‘sem projeto de nação’ e o que esperar do futuro

Em 2022, ao comentar sobre o bicentenário da Independência, o intelectual preferia não se arriscar sobre qual seria o futuro do Brasil, diante da “magra herança desses 200 anos”. Na opinião dele, a história do País foi forjada sem revoluções, mas sim por meio de acomodações entre as elites, o que permitiu que pouco mudasse ao longo dos séculos.

“A grandeza não passou de sonhos”, destacou na época. “Destruímos nosso paraíso terrestre. Nossos ares, águas, praias estão poluídas, nossas matas, destruídas, nossas terras, em perigo de desertificação, a Amazônia, ameaçada pelo desmatamento e pela mineração predatória. A grande população indígena da época da chegada dos colonizadores foi quase toda extinta. Grande parte da população ainda sofre as marcas da escravidão.”

Segundo o historiador, apesar do notável crescimento desde a fase colonial, o Brasil ainda tem de lidar com marcas de uma “herança pesada”, como a colonização portuguesa; o escravismo de negros trazidos da África; o modelo de economia agrária baseada em latifúndios e exportação; o quase extermínio dos indígenas; o papel do Estado absolutista; o monopólio religioso do catolicismo

“Patrimonialismo, paternalismo, elitismo, estatismo têm raízes profundas e ainda dificultam a construção de uma sólida república democrática”, acrescentou ele, também membro da Academia Brasileira de Ciências.

Ainda para Carvalho, o limitado protagonismo do Brasil no cenário internacional, apesar de seu tamanho, se explica pela falta de uma bússola claro. “Há 200 anos tínhamos um projeto de nação: construir um grande império com base em nosso tamanho, nossas riquezas. Faltava apenas população. Veio a população, uma das maiores do mundo, e não dissemos a que viemos. Nem a liderança da América Ibérica conseguimos exercer”, enfatizou.

Os militares e o poder

Sobre a presença das Forças Armadas nos círculos de poder, ele via a permanência de um “círculo vicioso” na relação entre militares e civis. “As Forças Armadas intervêm em nome da garantia da estabilidade do sistema político; as intervenções, por sua vez, dificultam a consolidação das práticas democráticas”, escreveu no livro Forças Armadas e Política, lançado em 2005 e reeditado em 2019.

Naquele ano, a influência militar na política havia ganhado ainda mais interesse após a chegada de Jair Bolsonaro (PL) ao Palácio do Planalto. “Estamos presos nessa armadilha e não conseguiremos escapar dela se não construirmos uma economia forte, uma democracia includente e uma República efetiva”, acrescentou o historiador.

No ano passado, ele analisou ainda como o tenentismo dos anos 1920 levou ao generalismo do militar quatro décadas depois. “A maioria dos tenentes enquadrou-se e passou a fazer parte do establishment militar”, disse ao Estadão. Segundo ele, muitos desses oficiais “escalaram na hierarquia militar” e passaram a atuar no campo conservador. “Vários estiveram presentes nos golpes de 1945, 1954, 1961, 1964.” Ele lembra que Arthur da Costa e Silva, segundo presidente da ditadura militar e ex-tenente dos anos 20, ligava explicitamente o golpe militar ao movimento de 1922.

Papel do STF e do Ministério Público

Em outra entrevista ao Estadão, no fim de 2019, Carvalho também fez análise sobre o papel dos militares na esfera política brasileira. Mas também ressaltou o protagonismo crescente – e problemático – do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Ministério Público.

“O STF ganhou respeitabilidade graças aos processos como o do Mensalão e da Lava Jato”, disse o professor. “Mas também vem se desgastando e perdendo respeito público pelo ativismo de ministros que escrevem em jornais, dão entrevistas, manifestam sua posição fora dos autos, envolvem-se em disputas pessoais”, ponderou, destacando que nunca a Suprema Corte teve tantos holofotes no País.

Sobre o papel dos promotores e procuradores, a avaliação foi semelhante. Embora tenham recebido respaldo da Constituição de 1988 e ganhado musculatura nos anos seguintes, o MP se via em uma encruzilhada. “Práticas arbitrárias por parte de promotores vêm pondo em risco o êxito do que tem sido uma das maiores ações republicanas entre nós, a de tornar a Justiça igual para todos levando à condenação réus do andar de cima, nunca antes atingidos.”