Os amantes da literatura estão em festa: a Bienal do Livro de São Paulo, maior evento literário do País, está de volta com força total após quatro anos sem a presença do público. Para compensar, a 26ª edição do evento espera o recorde de 500 mil pessoas no Expo Center Norte, entre 2 e 10 de julho, além de mais de 300 autores brasileiros e do exterior. O destaque é a expressiva comitiva de Portugal, país homenageado no ano em que se comemora o bicentenário da nossa Independência. A organização reservou-lhe um pavilhão próprio para receber 21 autores, incluindo representantes de etnias africanas e do Timor-Leste. Vêm ao Brasil Teolinda Gersão, Lídia Jorge, José Luís Peixoto e Gonçalo M. Tavares, ambos agraciados com o prêmio literário José Saramago. No ano do centenário de seu nascimento, a Bienal celebra a obra do único vencedor do Nobel em língua portuguesa na exposição “Voltar aos Passos que Foram Dados”.

HISTÓRIA Teolinda Gersão: processos de independência influenciam a cultura (Crédito:Gerardo Santos / Global Imagens)

Estarão presentes ainda a moçambicana Paulina Chiziane, primeira africana a receber o prêmio Camões, e o angolano Valter Hugo Mãe, autor do tema de sua delegação: É urgente viver encantado. “A frase reforça o poder da literatura e mostra que ela é uma fonte inesgotável para sermos livres e criarmos outras possibilidades de enxergar a realidade”, afirma Isabel Lucas, curadora do espaço português. “Por meio dos livros é possível desfazermos amarras e vivermos a liberdade de criar mundos encantados.”

Os portugueses não são as únicas estrelas do evento. Entre os brasileiros estão confirmados Laurentino Gomes, que lança a última parte de sua trilogia Escravidão, Itamar Vieira Jr., autor do best-seller Torto Arado, o líder indígena Ailton Krenak e o cartunista Mauricio de Sousa, entre muitos outros. Os caçadores de autógrafos também aguardam ansiosamente pelo norte-americano Nathan Harris, autor de A Doçura da Água, drama ambientado durante a Guerra Civil que chegou a ser recomendado pelo ex-presidente Barack Obama; virão ainda a espanhola Elena Armas, que se tornou celebridade após o sucesso de Uma Farsa de Amor na Espanha, e a chinesa Xiran Jay Zhao, que misturou ficção científica e lendas milenares em Viúva de Ferro. Na festa dos livros não há fronteiras.

“O tamanho do Brasil dificulta o equilíbrio”
José Luís Peixoto, poeta português, autor do clássico Nenhum Olhar

1 O que representa a homenagem a Portugal no ano do bicentenário da Independência do Brasil?

José Luís Peixoto
Esse simbolismo fala por si próprio. Parece-me um sinal de maturidade entre dois países ligados pela história, língua e inúmeros vínculos. Temos evoluído à medida que as relações
se estreitam. Antes havia certo preconceitos de ambas as partes. Aos poucos, Portugal percebeu a imensidão e complexidade do Brasil, e o Brasil passou a conhecer um pouco da contemporaneidade portuguesa, um país integrado ao contexto europeu.

Teolinda Gersão
É uma boa oportunidade para celebrarmos juntos. Em um mundo cada vez mais incerto e ameaçado, faz sentido estreitar laços entre países com afinidades, que usam a mesma língua. Todas as diferentes variantes são legítimas e corretas, não há entre elas nenhuma hierarquia.

Gonçalo M. Tavares
Compartilhamos a língua, mas isso não é suficiente. Falta um intercâmbio maior e uma política comum de traduções de grandes clássicos, por exemplo.

Lídia Jorge
A evocação da Independência será um momento rico. A viagem do coração de Dom Pedro chamará a atenção pela proeza de erguer esse órgão embalsamado como símbolo de partilha. A homenagem a Portugal ajuda a ver como somos todos próximos. Quando mergulhamos em uma literatura e na outra, podemos perceber como nossa comédia é nossa tragédia. Isso só pode correr bem.

“Faz sentido estreitar laços entre países com afinidades” Teolinda Gersão, autora de A Mulher que Prendeu a Chuva

2 O que há em comum entre as literaturas de países lusófonos? E quais são as diferenças?

José Luís Peixoto
O idioma é a base para nossa comunidade, mas parece-me que essas relações não partem de uma intenção de diálogo. As elites culturais brasileiras têm algum conhecimento do contexto dos outros países, mas a grande maioria do povo não conhece suas realidades. O tamanho do Brasil dificulta o equilíbrio dessas relações.

SEM PARTIDO Gonçalo M. Tavares: a literatura treina a lucidez (Crédito:Anna Weise)

Teolinda Gersão
A literatura de cada país lusófono tem características próprias. São resultados do desenrolar de suas histórias, das raízes profundas de suas culturas autóctones e do modo como cada nação, depois do processo de independência, evoluiu e se abriu ao mundo.

Goncalo M. Tavares
Acredito que a questão da tradução ainda é central. Por exemplo: Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, foi traduzido em Portugal por Pedro Tamen, um grande poeta. É uma tradução tão boa que é um absurdo não estar disponível a todos os leitores lusófonos.

Lídia Jorge
Em comum, temos a forma como o idioma modela o discurso que conduz a uma formação poética particular. Uma língua produz um pensamento, um modo de ser. Mas o resto é diferença. Se as literaturas são a soma das nossas batalhas contra a servidão na Terra, cada um dos sete países que compõem nossa comunidade conta-a de forma diferente.

3 Como vê a cultura e o momento político do Brasil?

José Luís Peixoto
O atual governo é uma vergonha para o Brasil. Como se pode fazer cultura a partir de desrespeito, prepotência e ignorância? Os grandes ícones da identidade brasileira mantêm-se com dificuldade. Isso alterou a forma como o País é visto no exterior.

Teolinda Gersão
Considero o Brasil o meu segundo país. No momento atual meu olhar é pessimista, mas não sem esperança. Vocês não caem dentro dos abismos pois são maiores que eles.

Gonçalo M. Tavares
A cultura é um modo de tornar mais clara uma situação, um modo de pensar, de refletir, de abrir pontos de vista. A cultura atua no campo da lucidez, não no campo do radicalismo. E infelizmente o que se vê muito é uma política de extremos, política radical que não suspende a ação para pensar ou refletir. A cultura brasileira, como qualquer outra cultura, aí está. Sempre no seu lugar: colocando questões e problemas e agindo fortemente com esse intuito, não aceitando simplificações nem extremismos.

Lídia Jorge
É um momento particular, com ameaças de diversos gêneros. O apoio à arte é escasso e visto como desperdício. Mas os criadores brasileiros não se desarmam e os portugueses também não.

4 Qual sua memória mais antiga sobre a cultura brasileira?

José Luís Peixoto
Jorge Amado foi o primeiro autor brasileiro que li. Em suas páginas tive a ideia de um Brasil exótico, colorido. Depois descobri novas realidades e criei uma vontade enorme de visitá-lo.

Teolinda Gersão
Lembro dos discos de vinil em versão brasileira, A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho. Meu pai explicava sobre o sotaque diferente, achávamos muito engraçado. Depois meu avô trouxe livros de Machado de Assis, que li na escola e me deixaram deslumbrada.

Gonçalo M. Tavares
Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, é um livro que comparo a Os Lusíadas na forma e no som, duas obras extraordinárias. Ler lentamente cada frase de Rosa é emocionante porque faz a alegria da língua. É uma de minhas referências.

Lídia Jorge
Tinha quinze anos qundo apaixonei-me pela história de Jubiabá, de Jorge Amado.

PAIXÃO Lídia Jorge: leitora de Jorge Amado na adolescência (Crédito: Ulf Andersen )

5 Qual o papel dos livros nesse mundo polarizado?

José Luís Peixoto
Não creio nessa polarização, isso é o cenário do Brasil e de mais alguns países. A guerra da Ucrânia não ajuda, mas há consenso na condenação internacional. A literatura é sempre a forma de mostrar o outro lado.

Teolinda Gersão
A literatura não é uma forma de passar o tempo nem algo descartável. Não tem o poder de mudar o mundo de uma vez, mas muda, ao menos, os leitores. E, antes deles, os escritores.

Gonçalo M. Tavares
Há infinitas formas de fazer literatura. É algo totalmente livre. Quem quiser ser radical pode ser, quem não quiser, que não o seja. É a “liberdade de ser livre”, como dizia Rimbaud. A arte pode ser desagradável, provocar atritos ou resistência. Depois o leitor coloca a sua visão como quiser.

Lídia Jorge
Portugal e Brasil saíram de ditaduras e hoje têm regimes democráticos. Há liberdade de expressão. Que bom que o Brasil, pela Constituição, pode mudar de presidentes, tal como nós, quando vemos que eles não prestam.

Confira as entrevistas na íntegra

Gonçalo M. Tavares

ISTOÉ – Qual é o simbolismo de ter Portugal como país homenageado na Bienal do Livro do Brasil, justamente no ano em que se completa o bicentenário da Independência? Como vê a relação entre os dois países hoje?

Gonçalo M. Tavares – É evidente que o relacionamento Portugal-Brasil faz parte de uma base comum, a língua, mas isso não é suficiente para coisas importantes, como haver traduções de grandes clássicos comuns aos dois países. Por exemplo: Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, foi traduzido em Portugal de forma extraordinária por Pedro Tamen, grande poeta. É uma tradução tão boa que acho um absurdo esse clássico de Proust não estar disponível a todos os leitores de língua portuguesa. Falta uma política de tradução de grandes clássicos, um maior intercâmbio de traduções.

 

ISTOÉ – O que há em comum entre a literatura brasileira e a de outros países lusófonos? E quais são as grandes diferenças? 

Gonçalo M. Tavares – A cultura brasileira chegou a Portugal de várias maneiras. Primeiro pela música, com cantores como Chico Buarque ou, de forma mais popular, pelas telenovelas. Há autores que apareceram em Portugal da mesma maneira. Houve um tempo em que se lia muito Jorge Amado e Lygia Fagundes Telles. Um dos livros que mais me marcaram foi As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, e as obras de Clarice Lispector. Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, também foi muito importante. A literatura brasileira foi entrando gradualmente. É uma pena, porque há grandes autores brasileiros que não são editados aqui com regularidade. Todos os grandes autores da língua deviam circular, devia ser um patrimônio comum. Editores reclamam de ler em um português mais formal, como o de Portugal. Dizem que tem uma sintaxe diferente. Acontece o mesmo, ao inverso, com o leitor português. É essencial ler a literatura portuguesa, angolana, etc. Um leitor enriquece com mais variações do português e com sintaxes distintas. Para um leitor experimentado, cada variação é um estímulo intelectual importante. Em vez de isso ser visto como algo impeditivo, deveria ser interpretado como uma forma extraordinária do português se expandir. A riqueza das novas palavras, como vemos em Guimarães Rosa ou nos países africanos. Isso é tão forte e intenso, é como ter um campo que vai enriquecendo por meio de novas ideias. A linguagem se torna uma floresta infinita habitada por diferentes árvores.

 

ISTOÉ – O mundo vive um momento de polarização e radicalismo. Qual o papel da literatura nesse cenário?

Gonçalo M. Tavares – Polarização, radicalismo… A literatura é uma forma de treinarmos a lucidez. Mais que tomar um partido ou uma posição clara, a literatura tem mais a ver com tornar mais clara a situação, fazer pensar, refletir. No campo da lucidez, não no radicalismo. Há infinitas formas de fazer literatura. Ela é totalmente livre: quem quiser ser radical em sua literatura, que o seja. Quem não quiser, que não o seja também. Como falamos na ficção, falamos na “liberdade livre”, como dizia o Rimbaud. Liberdade mental, de termos, de temas, de vocábulos e sintaxes, um espaço absoluto livre. Isso deve resultar em uma maior reflexão. Livros são gramas de lucidez, seu peso pode ser medido pela lucidez. Se pesar 100 gramas, são 100 gramas de lucidez. Se alguém lê vários livros fortes e bons, seu peso cultural cresce. A literatura não é do mundo da distração. A arte não é algo para passar o tempo, não é uma massagem. É, pelo contrário, e pode ser, até desagradável, provocar atritos, resistências. Ela fala de uma maneira diferente. É da vida da arte e da literatura. Quando uma consegue colocar os problemas de forma diferente, depois o leitor coloca sua visão como quiser.

ISTOÉ – Qual sua memória mais antiga sobre a literatura brasileira? Qual livro te causou maior emoção?

Gonçalo M. Tavares – A cultura é um modo de tornar mais clara uma situação, um modo de pensar, de refletir, de abrir pontos de vista. A cultura atua no campo da lucidez, não no campo do radicalismo. E infelizmente o que se vê muito é uma política de extremos, política radical que não suspende a ação para pensar ou refletir. A cultura brasileira, como qualquer outra cultura, aí está. Sempre no seu lugar: colocando questões e problemas e agindo fortemente com esse intuito, não aceitando simplificações nem extremismos.

José Luís Peixoto

ISTOÉ – Qual é o simbolismo de ter Portugal como país homenageado na Bienal do Livro do Brasil, justamente no ano em que se completa o bicentenário da Independência? Como vê a relação entre os dois países hoje?

 

José Luís Peixoto – Creio que esse simbolismo fala por si próprio. Parece-me um sinal de maturidade na relação entre dois países ligados pela história, pela língua, por inúmeros vínculos. A relação entre os dois países tem evoluído muito à medida que as relações se estreitam. Há algumas décadas, antes da internet, antes das trocas que se têm realizado com cada vez mais frequência, havia preconceitos muito fortes de parte a parte. Aos poucos, no entanto, Portugal têm-se apercebido da imensidão e da complexidade do Brasil, das suas múltiplas realidades e da sua gigante riqueza cultural. E, ao mesmo tempo, o Brasil tem vindo a conhecer um pouco da contemporaneidade portuguesa que é, hoje, um país profundamente integrado no seu contexto europeu, ao contrário do que acontecia nos anos 60, 70 ou, mesmo, 80.

 

ISTOÉ – O que há em comum entre a literatura brasileira e a de outros países lusófonos? E quais são as grandes diferenças? 

 

José Luís Peixoto – O trabalho da língua e os vínculos históricos são, na minha opinião, as bases de uma comunidade como esta. Comparando, encontram-se muitos laços entre a literatura que se produz no Brasil e a dos outros países que também usam o português. É inevitável que assim seja. No entanto, parece-me que, em muitas circunstâncias, essas relações são involuntárias, não partem de um conhecimento mútuo ou de uma intenção de diálogo. As elites culturais do Brasil têm algum conhecimento do contexto dos outros países onde se fala o português, mas a grande maioria do povo brasileiro não considera essas realidades e, em muitos casos, desconhece-as completamente. O tamanho do Brasil no âmbito desta comunidade lusófona dificulta o equilíbrio destas relações. A meu ver, é importante trazer para a reflexão a realidade dos múltiplos países, mas também seria importante que, nesse espaço de debate, se conhecesse com mais detalhe o quotidiano do Pará, da Rondônia ou do Mato Grosso do Sul, apenas para dar alguns exemplos.

 

ISTOÉ – Como escritor, como vê o momento político do Brasil e como avalia a forma como o governo brasileiro se relaciona com a arte e a cultura?

 

José Luís Peixoto – O atual governo brasileiro é uma vergonha para o Brasil. A própria forma como o Brasil era visto internacionalmente tem vindo a alterar-se. Os grandes ícones da cultura e da identidade brasileira mantêm-se com dificuldade perante o mal-estar causado pelas notícias que, diariamente, chegam do Brasil. Como se pode fazer cultura a partir de desrespeito, prepotência e ignorância? Um problema estrutural do Brasil é a desigualdade. Existe aos mais diversos níveis, começando pelo económico. Entre os países que conheço, o Brasil é o único onde a palavra “pobre” é usada como um insulto, como uma forma de inferiorizar o outro. Parece-me que o colonialismo, a escravatura e a violência foram os fatores históricos que criaram esta extrema desigualdade. Parece-me, também que, embora todos tentem passar as responsabilidades para outros, os colonialistas e escravocratas que causaram esta situação ficaram no Brasil, hoje são brasileiros.

 

ISTOÉ – O mundo vive um momento de polarização e radicalismo. Qual o papel da literatura nesse cenário?

 

José Luís Peixoto – Não creio que o mundo viva um momento de polarização e radicalismo. Esse é o cenário do Brasil e de mais alguns países. Guerras como a que está a acontecer neste momento na Ucrânia também não ajudam, mas existe um enorme consenso na condenação internacional. De qualquer forma, a literatura é sempre uma forma de mostrar o outro lado. Todas as interpretações do mundo que excluem o outro são contrárias à natureza da literatura.

 

ISTOÉ – Qual sua memória mais antiga sobre a literatura brasileira? Qual livro te causou maior emoção?

 

José Luís Peixoto – Jorge Amado foi o primeiro autor brasileiro que li. Na minha adolescência, os seus livros eram muitos lidos, assim como se assistia muitíssimo às novelas baseadas na sua escrita. Nessas páginas, personagens e ambientes, chegava a ideia do Brasil como um lugar exótico, com um enorme colorido ao nível da natureza e dos comportamentos. A partir daí, com outras leituras, fui descobrindo novas realidades deste país e criando uma vontade enorme de conhecê-lo. A partir de certa altura, o Brasil transformou-se num sonho que queria muito realizar. Tive a oportunidade de viajar pela primeira vez ao Brasil em 2003. Desde então, aprofundei muito o meu amor por este país infinito. Agora, já não é apenas um sonho, é a terra de muitos amigos e de muitas memórias.

 

LÍDIA JORGE

ISTOÉ – Qual é o simbolismo de ter Portugal como país homenageado na Bienal do Brasil, justamente no ano e que se completa o bicentenário da Independência? Como vê a relação entre os dois países hoje?

Lídia Jorge – A  evocação da  Independência do Brasil, lembrando o tempo em que aconteceu e como aconteceu, pelas actividades que vejo programadas, vai ser por certo, um momento rico na área da História e de Ciência Política, e ambos os países precisam dessa revisitação. Do ponto de vista popular, a iniciativa de fazer viajar o coração de Dom Pedro para o Brasil deverá chamar todas as atenções pela extraordinária proeza que significa erguer esse órgão embalsamado como símbolo de uma partilha. Um acto de memorialazação proveniente  dos velhos espaços ultra-românticos daquela época, ser recuperado desta forma, dá-nos que pensar sobre o tipo de sociedade em que nós tornámos. No mínimo, o que posso dizer é que pela fantasia que revela o acto tem potencial literário.  Quanto à Bienal, que bom que a Literatura Portuguesa seja, este ano, a convidada de honra. Será uma forma de a Bienal de São Paulo ajudar os leitores brasileiros  a prestarem atenção a este literatura europeia tão particular, e assim poderem ver como somos próximos. São duas literaturas bem aparentadas. Quando mergulhamos numa  e noutra, percebemos como a nossa comédia é a nossa tragédia.  Só pode correr bem. Em breve, Portugal poderia retribuir, procedendo com os autores brasileiros daquele modo a que os franceses chamam Opération Retour.

ISTOÉ – O que há em comum entre a literatura brasileira e a de outros países lusófonos? E quais são as grandes diferenças?

Lídia Jorge – O que há em comum é, sem dúvida, a língua portuguesa e a forma como ela modela o discurso que conduz a uma formulação poética particular de quem a usa. Uma Língua produz um pensamento e um modo de ser.  Mas o resto é diferença. Porque esta língua que partilhamos ocupa espaços geográficos distintos com histórias de populações diferentes e de grandes oposições entre si. A História levou a que usemos a nossa língua comum para exprimirmos  visões particulares. A Literatura de Timor-Leste conta uma narrativa diferente da narrativa de Cabo-Verde. Se as Literaturas são a soma das nossas batalhas contra a servidão na Terra, cada um dos sete países que compõem a CPLP  conta-a de modo diferente, porque tiveram e continuam  a ter senhores diferentes. Eu creio que, no meio da nossa diversidade, a Língua Portuguesa a nível da literatura, tem servido para expressar a alegria, o sonho, a insubmissão, a revolta e o ressentimento mas também o perdão. Sobretudo  quando ele é contemporâneo e clama pela justiça e pela equidade.

ISTOÉ – Como escritora, como vê o momento político do Brasil e como avalia a forma como o governo brasileiro se relaciona com a arte e a cultura?

Lídia Jorge – Globalmente estamos a atravessar um momento muito particular, cheio de ameaças de vários géneros, e por isso percebe-se perfeitamente a diferença que existe entre os países democráticos e os não democráticos. A diferença entre aqueles que apostam na radicalidade de esquerda ou de direita, e no terreno em muito pouco se diferenciam, antes se ajudam e potenciam mutuamente. Pelo contrário, Portugal e o Brasil, para além da proximidade cultural, saíram de ditaduras e têm desde há umas décadas regimes  democráticos. Temos liberdade de expressão, de movimento, de reunião,  separação de poderes, e de cinco em cinco anos escolhemos quem nos representa. Que bom o Brasil, segundo a Constituição, poder mudar de presidentes, de governos, de deputados, tal como nós, quando vemos que eles não prestam. Mais de metade do Mundo não o pode fazer. Claro que os apoios e as políticas para a Arte a para a Cultura são escassos nos nossos dois países porque a esse nível ainda se pensa que este sector é um desperdício. Mesmo assim, os criadores brasileiros não desarmam. Os portugueses também não.

ISTOÉ – Qual sua memória mais antiga sobre a literatura brasileira? Qual livro te causou maior emoção?

Lídia Jorge – A memória mais antiga que tenho de um livro brasileiro passou-se com Jubiabá de Jorge Amado. Eu deveria ter uns quinze anos e lia livros emprestados da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian. O funcionário escolhia por mim e entregou-me aquele volume. Apaixonei-me pela história de António Balduíno, a sua energia, rebeldia, o seu heroísmo. Mas o que me tocava mais era o seu amor pela linda Lindinalva.  As páginas do seu último encontro ficaram marcadas por lágrimas. Então grande foi a minha decepção quando mais tarde, já na Faculdade de Letras de Lisboa, me explicaram que aquele livro, todo ele, obedecia a uma demonstração política. Afinal nada daquela história correspondia a uma verdade mas  a uma montagem sociológica. Mesmo assim, eu resisti e escrevia as minhas notas pessoais nas margens do livro. No dia do exame oral, lá na Faculdade de Letras,  o Professor Vitorino Nemésio pediu-me que lhe passasse o livro que tinha sobre a pilha. Era Jubiabá. Eu comecei a tremer, o professor começou a ler, tirava os óculos e lia em voz alta as minhas notas. Ia lendo. A certa altura fechou o livro e disse que eu já tinha feito o meu exame de Literatura brasileira. Deu-me uma boa nota. Amo Jubiabá. De resto, o livro que mais admiro é, sem dúvida Grande Sertão:Veredas. Depois, são tantos os livros de autores brasileiros que admiro que  eu encheria várias páginas com  os seus títulos. Eu respeito, e muito, a Literatura Brasileira.

Teolinda Gersão

ISTOÉ – Qual é o simbolismo de ter Portugal como país homenageado na Bienal do Livro do Brasil, justamente no ano em que se completa o bicentenário da Independência? Como vê a relação entre os dois países hoje?

Teolinda Gersão – Em primeiro lugar, é uma excelente oportunidade para celebrarmos/festejarmos juntos o bicentenário da Independência do Brasil. Por outro lado, num mundo cada vez mais incerto e ameaçado, faz todo o sentido estreitar laços entre países com afinidades, desde logo entre os que usam a mesma língua, em diferentes variantes, todas igualmente legítimas e correctas, porque não há entre elas nenhuma hierarquia, pertencem de pleno direito e liberdade a quem as usa.

ISTOÉ – O que há em comum entre a literatura brasileira e a de outros países lusófonos? E quais são as grandes diferenças? 

Teolinda Gersão – Penso que, nos vários continentes, a literatura de cada país lusófono  tem características muito próprias, que resultam, em cada caso, do desenrolar da sua História e das raízes profundas da sua cultura autóctone. E também, obviamente, do modo como cada país, depois da independência, evoluiu e se abriu ao mundo.

ISTOÉ – Como escritora, como vê o momento político do Brasil e como avalia a forma como o governo brasileiro se relaciona com a arte e a cultura?

Teolinda Gersão – Considero o Brasil, onde já vivi dois anos, o meu segundo país, onde tenho muitos amigos, muitíssimos leitores, e me sinto profundamente compreendida. Apesar disso, tenho consciência de que sou estrangeira,  de que só os brasileiros conhecem realmente o Brasil e o podem e devem julgar, a partir de dentro. Mas não fujo à pergunta que me fez: No momento político actual, o meu olhar é pessimista, mas não sem esperança. Vocês não caem dentro dos abismos, são maiores do que eles.

Sobre a relação do governo brasileiro com a arte e a cultura, julgo que não é diferente do que se passa em Portugal: A arte e a cultura são o parente pobre, a que não se dá importância por razões várias, entre elas porque se acredita que não é rentável.

ISTOÉ – O mundo vive um momento de polarização e radicalismo. Qual o papel da literatura nesse cenário?

Teolinda Gersão – A literatura não é uma forma de passar o tempo, nem um produto descartável. Incomoda, faz pensar, obriga a ver de outro modo o que não se quer olhar. Não tem o poder de mudar o mundo de uma vez por todas, mas muda pelo menos o leitor, e antes dele o escritor. A arte é perigosa, por isso tantos escritores e artistas têm sido presos, exilados e perseguidos, ao longo dos séculos, até hoje. Também por isso os governos pouco ou nada a apoiam: é muito mais fácil dominar uma população inculta, que não tem sentido crítico nem entende os livros ( se os chegar a ler).

ISTOÉ – Qual sua memória mais antiga sobre a literatura brasileira? Qual livro te causou maior emoção?

Teolinda Gersão – A minha memória mais antiga são as historiazinhas da infância, que recebi em discos de vinil, em versão brasileira: A Bela Adormecida, O Chapeuzinho Vermelho e outras.

Eram em verso, eu adorava-as, sabia-as de cór e convidava os amigos da escola e da vizinhança para virem ouvir também. O meu pai explicava que eram em português do Brasil, que lá se dizia chapeuzinho, e nós capuchinho, etc., toda a gente achava isso naturalíssimo e muito engraçado. Por outro lado, o meu avô materno tinha viajado ao Brasil por duas vezes, e trouxera livros, sobretudo Machado de Assis, que li já no liceu, e me deslumbrou. Até hoje é um dos “meus” autores brasileiros mais amados.