Há alguns anos, quando mexia em uma caixa deixada por seu pai – e que permanecia fechada -, a atriz e diretora Yara de Novaes se surpreendeu com uma fotografia de sua bisavó, tirada no final do século 19, e que mostrava uma senhora negra vestida como sinhá. A imagem, apesar de inusitada, acabou deixada de lado por Yara até o momento em que foi convidada a participar do projeto CenaWeb – nasceu assim o (Des)memória, um inédito jogo teatral virtual, que investiga o passado para refletir sobre a representatividade e o processo de embranquecimento de diversos setores no Brasil – a começar pela sua própria família.

O trabalho, que poderá ser visto gratuitamente a partir deste domingo, 10, no site oficial do grupo Teatro em Movimento (www.teatroemmovimento. com.br), inspira-se na linguagem de games, o que permite uma interação com o espectador. “No teatro, jogamos o tempo todo um jogo que não acontece somente no palco e que se completa através de um pacto com quem está assistindo”, acredita Yara que, ao lado de Débora Falabella e Gabriel Fontes Paiva, o Grupo 3 de Teatro, responsável por alguns dos mais instigantes espetáculos dos últimos anos, como Contrações (2013), com direção de Grace Passô, Love Love Love (2017), dirigido por Eric Lenate, e Neste Mundo Louco, Nesta Noite Brilhante (2019), com condução de Paiva.

Ao acessar (Des)memória (neologismo presente em um poema da atriz e diretora mineira Elisa Santana), o espectador vai encontrar uma série de pistas que o levará para cenas gravadas, entre diálogos, depoimentos e narrações feitas pela diretora e um elenco formado especialmente para a ocasião. Além da equipe artística, Yara contou com o conhecimento de experientes profissionais do universo digital, que logo se tornaram indispensáveis em toda a criação do ‘game arte’, termo que criou para designar o novo gênero.

Para realizar o projeto, Yara e a equipe técnica gravou cenas em importes locais, como a sede do grupo teatral Espanca!, e também a Praça Minas Gerais, no centro de Mariana, cidade mineira que foi vítima do rompimento de uma barragem em 2015, tragédia que atingiu em sua maioria a população negra, o que evidenciou ainda mais o racismo estrutural do Brasil. É justamente essa locação que o espectador vê logo que acessa o trabalho – a partir daí, será possível escolher o caminho pelo qual pretende percorrer durante a sessão.

“A partir de herança e memória, (Des)memória reflete sobre racismo e faz pensar o Brasil de hoje. A nossa pesquisa investiga coisas que lembramos e também aquelas que precisaram ser esquecidas. Para seguir em frente é preciso olhar para trás, usando a noção de que o tempo é espiralado, tudo estará sempre interligado”, observa Yara.

Seu trabalho, aliás, se une a outros dois – Ítaca, 365, apto 23, de Cacá Carvalho, e Ato, de Barbara Paz – para formar o projeto CenaWeb, que reúne criações específicas para a internet. “E, dos três trabalhos, (Des)memória é o que mais radicaliza na questão digital. Apesar de ser gravado previamente, esta montagem traz uma experiência única, assim como no teatro presencial. O diferencial é que o espectador participa ainda mais ativamente, em uma relação de intimidade muito próxima”, analisa Mariana Lima Muniz, responsável pela coordenação do Cena Web ao lado de Tatyana Rubin, idealizadora do Teatro EmMov Digital.

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Em Ato, as imagens em movimento ocupam lugar de destaque no trabalho de Barbara Paz. “Eu queria falar de artistas que ficaram solitários, sem poder se apresentar, sem público, sem nada. A história se passa em um mundo pós-pandêmico, em que todos estamos com cicatrizes e traumas por conta de toda a situação vivida’, conta Barbara, que filmou em Ouro Preto, onde se destaca a Casa da Ópera, construída em 1770 e considerado o mais antigo teatro em funcionamento nas Américas.

Com argumento de Barbara e roteiro assinado por Cao Guimarães, o projeto é focado no encontro entre dois personagens: uma mulher solitária (Alessandra Maestrini) e um enfermeiro que enfrenta a viuvez precoce ao perder a esposa para a covid-19 (Eduardo Moreira). Para enfrentar a solidão, ele contrata os serviços da mulher, que passara a ganhar a vida oferecendo afeto.

Já Ítaca, 365, apto 23 tem o clássico de Homero (Odisséia) como ponto de partida para acompanhar o retorno ao lar de um homem após um longo tempo. “O isolamento social nos proporcionou voltar para a casa, voltar para dentro, ver coisas que não víamos mais e repensar”, reflete Cacá Carvalho.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.


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