PROTESTO Manifestantes seguram cartaz durante evento em homenagem a Genivaldo de Jesus Santos, morto no dia 25 (Crédito:Mauro Pimentel)

O País inteiro assistiu às cenas da morte de Genivaldo de Jesus Santos no dia 25, em Sergipe: abordado por agentes da Polícia Rodoviária Federal quando passava de moto pela BR-101 na cidade de Umbaúba, ele é xingado, agredido, imobilizado e, por fim, asfixiado na caçamba da viatura oficial com gás lacrimogêneo e spray de pimenta. Tudo sob os olhares da população local e dos próprios familiares da vítima, que alertaram se tratar de alguém que tinha distúrbios mentais e tomava remédios controlados.

O sergipano de 38 anos era pai de um menino de sete. Era o sustento da família, segundo a viúva. Enquanto o País tentava entender como uma pessoa inocente foi torturada e morta em praça pública, a mãe se desesperava e os parentes mostravam indignação. Um tio disse que chegou a avisar os policiais de que ele estava com remédios no bolso. Não foi a primeira vez que ele teve problemas com policiais. Em 2016, em um processo por resistência à prisão e desacato, um laudo psiquiátrico havia comprovado que sofria de esquizofrenia e, de acordo com a conclusão da Justiça, não poderia compreender atos ilícitos.
A cena macabra de Sergipe não evidenciou apenas a má conduta de agentes públicos. Mostrou uma política de Estado que se perpetua. Poderia ter acontecido em qualquer estado do País e ilustra a truculência e o despreparo da polícia, que pune estratos pobres da população, especialmente negros, que precisam sobreviver a uma sociedade injusta que lhes nega condições de ascensão, direitos mínimos como saúde e educação e, inclusive, segurança. Diversas entidades se manifestaram. O Ministério Público Federal recomendou à PRF que retomasse o funcionamento da Comissão de Direitos Humanos e afastasse os agentes envolvidos. A OAB pediu a prisão cautelar dos policiais e a ONU pediu uma investigação célere e completa do caso. A Comissão de Direitos Humanos do Senado deve acompanhar as investigações, a cargo da Polícia Federal. A Comissão de Direitos Humanos da Câmara aprovou convocação de Anderson Torres, ministro da Justiça, para dar explicações.

BRAÇO ARMADO Manifestantes protestam diante da superintendência da Polícia Rodoviária Federal em São Paulo, em 27/5 (Crédito:Pilar Olivares )

Há dúvidas sobre o resultado dessas apurações, pois há um histórico de impunidade. O delegado da PF a cargo do caso declarou que “não via motivos” para a prisão dos agentes envolvidos. A versão da ocorrência policial foi alterada mais de uma vez e apontou “mal súbito” como a causa do óbito. Já o laudo mostrou que Genivaldo morreu por asfixia, como as imagens que chocaram o País sugerem. Dois diretores da PRF dispensados após o episódio na verdade foram promovidos. Já tinham sido designados para a função de oficial de ligação no Colégio Interamericano de Defesa, em Washington (EUA), onde devem ganhar R$ 69 mil mensais. A PRF se contradisse. Havia declarado que Genivaldo “resistiu ativamente a uma abordagem e que, em razão da sua agressividade, foram empregados técnicas de imobilização e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua contenção”. Depois da comoção nacional, mudou de posição. Declarou que “assistia com indignação os fatos ocorridos e que não compactua com as medidas adotadas durante a abordagem, nem com qualquer afronta aos direitos humanos”.

CHACINA A Polícia Rodoviária Federal atuou na operação da Vila Cruzeiro, dia 24, que levou a pelo menos 25 mortes (Crédito:José Lucena)

Esse é quase um roteiro exemplar de casos que se multiplicam cotidianamente. Inclusive em Embaúba, onde dois jovens declararam que foram agredidos por policiais da PRF dois dias antes da morte de Genivaldo, tendo recebido chutes e tapas. Cinco dias depois dessa tragédia, dois guardas civis municipais de Embu das Artes, na região metropolitana de São Paulo, foram afastados após terem agredido um homem caído no chão, uma cena gravada por transeuntes. No mesmo dia, na capital paulista, agentes da Guarda Civil Metropolitana puseram o joelho no pescoço de um homem negro, e teriam colocado um saco com pó branco perto dele para acusá-lo de tráfico de drogas. As imagens viralizaram nas redes sociais. No dia 28, um jovem foi agredido com chutes e socos na cabeça por seguranças de um shopping de Ribeirão Preto (SP) por não abaixar o volume de seu celular. Ele é autista e tem deficiência auditiva. Um dia antes do caso Genivaldo, uma operação policial na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, resultou em ao menos 25 mortes, a maior da história. Não que isso seja excepcional. Nos últimos 14 anos, ocorrem 593 chacinas policiais no estado.

A tragédia de Sergipe coloca em evidência mais uma vez a forma como o racismo atua. “Se fosse um branco, não aconteceria aquilo”, disse acertadamente a irmã de Genivaro. Para José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares e uma das principais vozes no Brasil contra o racismo, o sergipano foi vítima de um assassinato e de um caso expresso de racismo. Para ele, quando se fala de violência policial contra negros, os representantes do Estado se sentem à vontade para cometer atrocidades. “O ódio racial faz isso: pensar que os negros são menos que qualquer animal ou inseto. Por isso os policiais atuaram à luz do dia. Não agiriam dessa forma se fosse uma pessoa branca. No caso de Genivaldo, ocorreu todo tipo de arbítrio: abuso de autoridade, tortura e assassinato.”

ROTINA CRUEL Agentes da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo imobilizam um homem negro no dia 30, colocam o joelho no seu pescoço e trazem um saco branco perto dele para acusá-lo por tráfico de drogas (Crédito:Divulgação)

Esses casos que se repetem expõem uma chaga histórica que a sociedade não consegue superar. O abolicionista Joaquim Nabuco defendia no século XIX que a transição para a riqueza e o desenvolvimento só ocorreria após o a integração do negro em um projeto de Nação, o que até hoje não ocorreu efetivamente. A diversidade só passou a ser celebrada (e não vista como um problema) há cem anos, principalmente a partir da obra de Gilberto Freyre, mas isso não significou um esforço concreto de integração. A lógica da Casa-Grande e Senzala ainda permanece. As ações afirmativas que se universalizaram a partir dos anos 1990 ainda estão longe de atingir o conjunto da sociedade. Entre os dados parciais de mortos pela polícia, mais de 80% são negros. Segundo o IBGE, o rendimento médio domiciliar per capita de pretos e pardos era praticamente a metade do que os brancos ganhavam. Entre os 10% da população brasileira que têm os maiores rendimentos do país, só 27,7% são negros. Dados do Conselho Nacional de Justiça, mostram que havia 14,2% magistrados pardos e 1,4% magistrados pretos em 2013 ( último ano com informações disponíveis). A imensa maioria dos magistrados são brancos (83,8%). Um estudo de pesquisadores do Núcleo de Estudos Raciais do Insper aponta que os brancos têm o dobro de chance de se eleger deputado em relação aos candidatos negros.

DESIGUALDADE Estudo mostra que a desigualdade cresceu no Estado Novo varguista e na ditadura de 1964 (Crédito:AGENCIA BRASIL)

“O Brasil conserva um formato aristocrático. A cada segmento social é dispensado um tratamento diferente, de acordo com a posição daquele indivíduo. O que faz o policial barrar o negro, o pobre e o doente está arraigado na essência do País desde que fomos colonizados. A aparência sempre vem primeiro. Quanto mais clara a cor da pele, mais bem arrumado, mais aceito. Somos iguais perante a lei, mas algumas pessoas são mais iguais do que outras”, critica o antropólogo Roberto DaMatta.

O tratamento recebido por pobres e negros é uma face perversa da desigualdade social, um problema que tem raízes históricas no País – e não está sendo combatido. A desigualdade no Brasil é uma das piores do mundo. O estudo mais completo sobre o assunto no País é do pesquisador do Ipea Pedro Ferreira de Souza, publicado em “Uma história da desigualdade”. Ele mostra que o Brasil não conseguiu diminuir a concentração de renda entre 1926 e 2013. Os dados indicam que as ditaduras (Estado Novo varguista e regime militar nos anos 1960) favoreceram a concentração. Nos anos 1970, ficou famosa a frase de Delfim Netto de que era preciso “fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo”. A democracia atuou no sentido de diminuí-la, apesar de a hiperinflação dos anos 1980 ter piorado o quadro. A estabilização da moeda e os programas sociais das décadas de 1990 e 2000 reduziram a pobreza, mas, ao contrário do senso comum, os anos Lula não atacaram a raiz do problema, apesar de terem tirado milhões da miséria momentaneamente. Ajudaram os mais pobres e os muito ricos, “espremendo” aqueles que têm renda média. E a crise econômica a partir de 2014, talvez a maior da história, pode ter causado uma regressão, ainda não avaliada.

“É preciso fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo” Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, nos anos 1970

Sidney Corrallo/AE

O Brasil vive múltiplos problemas de desigualdade, muitos deles superpostos e combinados – de renda, raciais, de gênero, de acesso a serviços etc., aponta Eduardo Cesar Leão Marques, cientista político e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole da USP. Ele afirma que o enfrentamento dessas questões demanda anos de esforço continuado, mas o País passou a caminhar na direção contrária. O caso Genivaldo escancara os efeitos perversos de quando as desigualdades sociais são consideradas como uma questão menor. Os programas de transferência de renda trazem benefícios imensos, e por isso não podem parar ou ser desorganizados como aconteceu com a substituição de um programa consolidado e bem estruturado (Bolsa Família) por um produto meramente eleitoral (Auxílio Brasil). “O presente governo tem tentado desmontar sistematicamente esse esforço, sem colocar nada de mesmo porte no lugar. A questão social nem mesmo é pensada.” Para ele, a situação é produto direto e responsabilidade do governo atual e de seu descaso com a questão social e com a formulação de qualquer política pública minimamente embasada. “Não apenas é um governo insensível a tais questões, é a administração federal mais amadora que já tivemos.”

Já o aumento da violência está no DNA da atual gestão. Depois da última tragédia, Bolsonaro disse que a PRF fazia um trabalho “excepcional”. Ele lamentou o ocorrido, mas defendeu uma investigação “sem exageros e sem pressão por parte da mídia, que sempre tem um lado, o lado da bandidagem”. Em seguida, voltou a exibir-se passeando de motocicleta sem capacete. Mesmo se fosse multado, não pagaria os R$ 293,47 devidos pela infração, a mesma que causou a morte de Genivaldo. Afinal, o mandatário nunca pagou nenhuma multa por exibir-se sem máscaras durante a pandemia e até agora conseguiu escapar ileso de todos os crimes que lhe foram imputados pela CPI da Covid. Assim como debochou das vítimas do coronavírus, na semana passada agiu com escárnio diante do caso que ainda comovia o País. Mostrou de novo a exaltação da ilegalidade e o poder irrestrito das autoridades: na prática, uma aula sociológica da miséria brasileira.

O caso Genivaldo é o retrato do atual governo não apenas pela exaltação da truculência. Os autores eram agentes da Polícia Rodoviária Federal, corporação que tem sido alçada a braço de apoio de Bolsonaro, que tem se esforçado para instrumentalizá-la para seu projeto de poder, assim como faz com a PF. A Constituição diz que a PRF tem como função o patrulhamento ostensivo das rodovias federais, mas desde 2019 duas portarias já foram editadas para mudas suas atribuições. O objetivo foi permitir que operações de natureza ostensiva, investigativa e de inteligência. A PF protestou porque haveria invasão de suas competências, mas a participação em operações conjuntas e o cumprimento de mandados de busca e apreensão foram validados pelo STF. Investigada pelo MPF, a PRF é protagonista dos últimos dois episódios de violência que chocaram o País. Além do caso Genivaldo, também estava diretamente envolvida na operação da Vila Cruzeiro. E a corporação também resiste à ampliação de sua diversidade. Uma lei federal de 2014 obriga concursos públicos federais a reservar 20% das vagas para negros (cota racial). A PRF e a Polícia Federal têm histórico de só cumprir a medida após serem acionadas judicialmente pelo MPF.

APOIO Michelle Bolsonaro homenageia a Polícia Rodoviária Federal em 17/3, durante Encontro Nacional das Mulheres (Crédito:Divulgação)

Vila Cruzeiro

“O que aconteceu na Vila Cruzeiro foi uma operação desastrosa que se repete há anos nas periferias”, protesta José Vicente. Ele afirma que as policias não obedecem às normas quando se trata da população negra das favelas. “Isso é fato irrefutável. O caso da Vila Cruzeiro não foi o primeiro e, como de costume, não houve responsabilização dos agentes que participaram da ação e nem ao comando. Esse é um dos motivos para que essa situação seja recorrente. Por que agentes da PRF estavam às três horas da madrugada dentro da favela e não fiscalizando nas rodovias? Porque as corporações policiais se tornaram um poder paralelo.”

Esses casos já chamaram a atenção no exterior. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgão ligado à OEA, publicou um comunicado alertando que o Brasil tem o “dever de garantir o cumprimento das normas internacionais sobre o uso da força com base nos princípios da legalidade”. Há um longo caminho a percorrer para investigar esses procedimentos, inclusive no Brasil. A própria transformação da viatura em uma “câmara de gás” é, ao que tudo indica, uma prática que se reproduz na PRF e em outras corporações. Os métodos inaceitáveis da polícia são apenas a ponta do iceberg de um mal social e precisam mudar. E o governo ignora casos bem-sucedidos, como a adoção de câmeras nos uniformes dos policiais de São Paulo, que derrubou o número de homicídios.

NOS EUA George Floyd morreu
em 2020 nos EUA durante uma operação policial: impulso ao movimento Black Lives Matter (Crédito:Divulgação)

Como aconteceu no caso George Floyd, nos EUA, a multiplicação das imagens de denúncias em redes sociais precisa ajudar a forçar uma mudança de atitude das forças de segurança e também da sociedade. Floyd foi assassinado em 2020 por um policial branco que o sufocou após ter ajoelhado no seu pescoço numa abordagem policial banal. A cena foi gravada por populares em vídeo. Tal ação provocou uma comoção mundial e deu origem às manifestações do Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em tradução livre), um movimento que denuncia a violência e o racismo e internacionalizou a questão da violência policial contra o negro, tanto nos EUA quanto em outros países. Genivaldo é mais uma vítima dessa ferida aberta. Para DaMatta, com a instantaneidade da comunicação, vivemos uma época de transparência da desigualdade. “Está muito difícil de esconder. Estamos desmascarando a hipocrisia brasileira. Temos uma desigualdade social sistêmica que precisa ser colocada sob luz.”
* Colaborou Gabriela Rölke