RESGATE Bombeiros retiram primeiro corpo encontrado sob os escombros: vítimas de um sistema falho

Cães farejadores localizaram na sexta-feira 4 o primeiro corpo sob o escombros do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, no centro de São Paulo, que desabou por causa de um incêndio na madrugada de 1º de maio. As buscas por vítimas soterradas na tragédia são apenas uma das inúmeras consequências de um desastre que expôs as fissuras de um sistema falho em muitos aspectos. Além de exibir um erro geral de controle de segurança sobre uma ocupação de sem-teto que sequer deveria existir naquele local, a queda do edifício trouxe à tona o descaso das autoridades diante do grave problema da falta de moradia na cidade de São Paulo, metrópole onde milhares de pessoas vivem em situação de abandono em dezenas de imóveis ocupados. Havia motivos de sobra para evacuar o prédio ou fazê-lo passar por uma completa revisão de segurança há pelo menos um ano. A Prefeitura, os bombeiros e os órgãos fiscalizadores sabiam disso. Antes que a poeira baixasse sobre os escombros que engoliram no mínimo seis pessoas e deixaram outras 372 sem abrigo — incluindo cerca de 40 crianças e adolescentes —, veio à tona também uma estrutura de negócio que acompanha algumas ocupações na qual se cobra para oferecer muito pouco em troca. Paga-se para viver em extrema precariedade, sem qualquer proteção e sob o evidente risco de morte.

As famílias ocupantes dos “apartamentos” do prédio, localizado no Largo do Paissandu, um dos pontos mais movimentados da cidade, pagavam uma taxa que variava de R$ 160 a R$ 400, de acordo com as condições de cada um. Pela média, eram arrecadados ao menos R$ 30 mil por mês dos moradores, na maioria trabalhadores informais que atuam como vendedores ambulantes, balconistas, carroceiros e na faxina de prédios e do comércio da região. O objetivo da coordenação do Movimento Luta por Moradia Digna (MLMD), um dos diversos que atuam na cidade, seria manter uma portaria em funcionamento, pagar taxas de luz, água e os custos dos advogados que atendiam à ocupação do Wilton Paes de Almeida. Era uma conta salgada e sem contrapartida. Seu coordenador, Ricardo Luciano Lima, já aplicou calote no pagamento de tarifas públicas. Mesmo cobrando taxas de R$ 300 por quarto em um prédio invadido no Largo do Belém, em 2016, ele foi denunciado por ligações clandestinas de água e acabou condenado em primeira instância a um ano e dois meses de reclusão em regime semi-aberto. Lima não vive no prédio, mas em outra ocupação na Zona Leste. “Ninguém paga aluguel. É tudo para manutenção. Aqui não tem milionário”, diz ele. Eventuais atrasos no pagamento das taxas não eram tolerados por mais de três ou quatro dias até “ordens de despejo” fossem executadas. Quem era removido tinha seus poucos pertences jogados na calçada.

“Tem muita gente doente e assustada aqui. Ajudei a dar pão, bolacha e água para o pessoal” Antônio da Paz, morador (Crédito:Marco Ankosqui)

Chamas

O valor mais alto cobrada no prédio estava além do dobro de ocupações mais estruturadas, como as da Rua Mauá e da Av. Prestes Maia, as maiores da cidade — juntas, elas abrigam 3 mil pessoas. Organizados, nestes locais há extintores em todos os andares e grupos encarregados da limpeza e manutenção. Algo bem diferente do Largo do Paissandu, onde o lixo se acumulava no poço do elevador — o que ajudou a propagar as chamas que, ao atingir temperaturas superiores a 600º C comprometeram a resistência das estruturas metálicas, que suportaram por cerca de uma hora e meia, antes de ruírem. Dois prédios vizinhos foram atingidos e correm o risco de cair. A primeira igreja luterana de São Paulo, erguida em 1908, foi destruída. Restaram apenas o altar e a torre, que também está condenada. O chocante desmoronamento do edifício em chamas foi acompanhado de uma cena dolorosa: as imagens do morador Ricardo Pinheiro, filmado tombando junto com o prédio no momento em que seria içado por uma corda lançada pelos bombeiros. Moradores contaram que Tatuagem, como era conhecido, ajudou a tirar crianças do local. Os bombeiros acreditam ser de Ricardo o primeiro corpo resgatado. Além dele, podem estar sob as lajes Selma Almeida Silva e seus filhos gêmeos, Wendel e Werner, de 9 anos. Também está desaparecido o casal Eva Barbosa Silveira e Walmir Souza Santos, que ocupava uma área no 8° andar do prédio.

SOLIDARIEDADE E apenas em 24 horas depois do acidente a Prefeitura recebeu cinco toneladas de donativos (Crédito:Suamy Beydoun)

A evacuação rápida e a pronta ação dos bombeiros salvaram vidas. A manicure Michele de Oliveira Silva, de 35 anos, morava com o marido e a filha no quinto andar — local onde o fogo começou — e afirma que os acontecimentos foram muito rápidos. Segurando uma boneca nos braços, ela lembra de cenas da tragédia. “Eu ouvi ‘pum’ e aí todo mundo começou a gritar ‘tá pegando fogo’”, afirma. Depois disso, Michele diz que as pessoas começaram a correr e as chamas passaram a consumir a fiação do prédio. Durante a fuga, a manicure afirma que o marido dela teve que quebrar uma porta que estava trancada com cadeado e que os vidros da fachada do prédio começaram a quebrar por causa do calor. Porém, a angústia dela não acabou quando finalmente conseguiu descer as escadas com a família e chegar até a rua. “Quando descemos, meu marido voltou para pegar a roupa e fiquei preocupada. Eu falei ‘já morreu’. Mas depois ele desceu vivo, graças a Deus”, afirma a mulher fechando os olhos e levando a mão ao coração. Depois de passar pelo trauma, Michele perdeu roupas, documentos e outros objetos pessoais. “Fiquei na rua aqui. Estão ajudando a gente dando alimento e roupa”, mas mesmo com a solidariedade das pessoas, ela não sabe ao certo qual será seu futuro. A única coisa que ela afirma ter certeza é que não quer ir para um albergue: “Lá é ruim. Eles roubam as coisas da gente. Eu já morei em albergue e quando a gente volta do trabalho, não tem mais nada.”

Sem ter para onde ir, boa parte dos desabrigados passou as duas noites seguintes na frente da Igreja do Largo do Paissandu, onde receberam donativos. A intenção era manter a maior parte dos moradores unidos, evitando a dispersão por albergues, onde temem ser confundidos com moradores de rua, condição que repudiam. “Aqui não tem mendigo. Só trabalhador pobre”, disse Ana Luiza dos Anjos Garcês. “Perdi geladeira, TV, tudo, menos meu RG e a roupa do corpo”, contou Marinalva da Costa Fonseca. Com um problema de locomoção que a obriga a usar uma muleta, ela morava sozinha no térreo e chegou em casa na madrugada apenas para ir dormir na praça. Perto dela, Antônio da Paz tentava distribuir os pães recebidos antes que entrasse em funcionamento uma cozinha improvisada. Com o dinheiro que tinha no bolso, ele comprou manteiga. “Tem muita gente doente e assustada aqui. Ajudei a dar pão, bolacha e água para o pessoal”, disse Paz. Na tarde da quinta-feira 3, a prefeitura comunicou que o volume de donativos, principalmente roupas, para os desabrigados era suficiente: foram cinco toneladas só nas primeiras 24 horas.

FAMÍLIA Geilson, Iranilde e a pequena Ana Luisa: vida difícil em ocupação na rua Mauá (página oposta) (Crédito:Aneto Herculano)

Vistoria

Desde janeiro de 2017 um laudo da Prefeitura apontava que o imóvel “não reunia condições mínimas de segurança contra incêndio”, dadas as instalações elétricas improvisadas e sobrecarregadas. Foi aberto um inquérito na Superintendência do Patrimônio Público da União (SPU/SP), órgão responsável pelo imóvel, para que fosse feita uma reforma emergencial, o que nunca ocorreu. Integrantes de outros movimentos de sem-teto consideravam há tempos o edifício inadequado até para quem não tem onde viver. Por isso estava em poder do MLMD desde 2010. Dois integrantes de movimentos sociais afirmaram, sob condição de anonimato, que o nível de organização desse movimento é mínimo. Ele não participa ativamente das reuniões com os órgãos de habitação. “O que não adianta é culpar as vítimas. Nós queremos que se façam vistorias nos prédios ocupados e que eles sejam transformados em moradias definitivas”, afirma Benedito Roberto Barbosa, advogado da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM). “Não se pode criminalizar as ocupações e transformar vítimas em culpados”. Foi acertado entre os movimentos populares, a Prefeitura e o Ministério Público que serão constituídas duas comissões, uma técnica e outra de vistoria nos prédios. A Prefeitura se comprometeu a organizar uma força-tarefa que até 20 de junho pretende vistoriar todos os imóveis invadidos no Centro e indicar as medidas de segurança a serem tomadas.

Na quinta-feira 3, a Polícia Civil anunciou que uma investigação mais ampla vai tentar descobrir cobranças extorsivas praticadas em algumas ocupações na cidade. “Vamos investigar as associações que exploram moradores das ocupações”, disse o secretário estadual de segurança pública Mágino Alves Barbosa. Proprietário do edifício, a União solicitou que a Polícia Federal também atue no caso. Outra frente de investigação tenta vasculhar possíveis vínculos de algumas ocupações com o Primeiro Comando da Capital (PCC). Prédios ocupados são territórios quase inexpugnáveis para a polícia e, eventualmente, servem de esconderijo para drogas e armas. Em 2016, o Departamento Estadual de Repressão ao Narcotráfico (Denarc) desbaratou uma quadrilha ligada ao PCC sob a fachada do Movimento Sem Teto de São Paulo (MSTS), que ocupava o Cine Marrocos, no Centro. Vinte e oito pessoas foram presas.

Cerca de 4 mil famílias habitam as ocupações do Centro. Das 70 invasões no centro de São Paulo, 15 estão em situação parecida com a do edifício que desabou — o que só aumenta o risco de novas tragédias. A estimativa é de funcionários da Secretaria Municipal de Habitação. O déficit habitacional da cidade de São Paulo é e de 358 mil moradias. O poder público consegue atender apenas 5% da demanda. Em 2017, foram entregues 7 mil novas moradias populares e outras 11 mil estão em construção. Enquanto isso, há 1.385 imóveis ociosos, de acordo com o Plano Municipal de Habitação, de 2016.

Há um ano, Geilson Gomes Alves, de 25 anos, e Iranilde Maria da Silva, de 31 anos, se conheceram. Desde então, eles moram juntos na ocupação da Rua Mauá. Há dois meses, a família ganhou mais um membro: a pequena Ana Luisa. Segundo o casal, o ambiente da ocupação é tranquilo para eles e para a criança. Ao receber a reportagem no quartinho em que os três moram, Iranilde coloca a roupa na criança que tinha acabado de tomar banho e assiste a um programa policial que acontece no final da tarde. Segundo Iranilde, morar em ocupação não foi uma “opção imediata”, mas o que restou para ela, que trabalha em uma cozinha de restaurante, e para o marido. “Não tem como pagar aluguel aqui em São Paulo”, diz. Organizada pelo Movimento por Moradia, Luta e Justiça (MMLJ), a ocupação ali conta com extintores em todos os andares e grupos encarregados da limpeza e manutenção. Há até vigilância por câmera. “Todo mundo aqui está na fila para um imóvel. Temos regras claras de segurança e os fogareiros estão proibidos, por exemplo”, diz o coordenador Júnior Rocha.

“Ninguém paga aluguel. É tudo para manutenção. Aqui não tem milionário” Ricardo Lima, coordenador do MLMD

Marco arquitetônico

O edifício Wilton Paes de Almeida foi projetado pelo arquiteto Roger Zmekhol em 1961. Considerado um dos melhores exemplos da arquitetura moderna na cidade, foi tombado em 1992. Inaugurado em 1968, o prédio de 24 andares foi usado pela Polícia Federal ao longo de 20 anos. Uma agência do INSS funcionou no primeiro andar até 2009. Projeto aclamado pelo revestimento envidraçado da fachada, a construção se valia de uma estrutura mista de concreto e aço que não foi capaz de resistir a um curto circuito iniciado numa tomada que abastecia uma geladeira, um microondas e uma televisão no “apartamento” 55, situado no quinto andar. Como o imóvel era comercial, as acomodações foram divididas por paredes de madeira e papelão, o que só alimentou as chamas. Essa foi a conclusão da Polícia Civil na quinta, após conversar com a moradora do 55, Walquíria Camargo do Nascimento. Seu marido, Pedro Lucas Ribeiro, e uma de suas filhas, Maria Cecília, seguiam internados. Pedro em estado grave por inalação de fumaça e gases tóxicos. De acordo com o capitão Marcos Palumbo, porta-voz do Corpo de Bombeiros, “essas ocupações têm um caráter social muito importante” e as autoridades têm que agir para fazer com que situações como essa não aconteçam mais. “Eu tenho preocupação com a segurança das pessoas. Para o bombeiro, a prevenção é melhor de trabalhar. “Ela é muito mais inteligente e muito menos danosa que o combate”, diz.