Cerca de 700 mil indivíduos atingidos, entre famílias, municípios e povos tradicionais brasileiros aguardam o julgamento contra a mineradora Samarco, controlada pela Vale S.A. e pela BHP Billiton, para reparação coletiva de um dos maiores desastres socioambientais do país. As sessões começam nesta quarta-feira, 31, em Londres, para julgar a ação movida pelas vítimas após quase 9 anos do rompimento da barragem do Fundão, em Mariana (MG).

O julgamento de responsabilidade sob o colapso da barragem está marcado para outubro de 2024 na corte da Inglaterra e País de Gales. Na última quinta-feira, 25, a Justiça Federal no Brasil condenou a Vale, a BHP e a Samarco a pagar R$ 47,6 bilhões como indenização pelos danos morais coletivos causados pelo rompimento da barragem. Porém, a decisão não é final e cabe recurso.

A IstoÉ conversou com uma das representantes legais das vítimas que aguardam o julgamento em solo inglês. Confira:

O que aconteceu

Há pouco mais de oito anos, em 5 de novembro de 2015, a barragem do Fundão, que ficava em Mariana (MG), rompeu-se no subdistrito de Bento Rodrigues – cerca de 35 km de distância do centro da cidade -, liberando um volume de lama tóxica que atingiu o Rio Doce e chegou até o Oceano Atlântico. Banhando 230 municípios de Minas Gerais e do Espírito Santo, o rio sofreu um pesado processo de contaminação pela lama tóxica. 

A advogada Ana Carolina Salomão, sócia do escritório de advocacia Pogust GoodHead, representante das vítimas na ação coletiva movida na Inglaterra, costuma comparar o volume de lama tóxica derramada na região com o equivalente a 20 pirâmides do Egito. “Quando falamos da lama, dá a impressão que o problema foi acarretado por uma força de erosão, uma força física. Mas não foi o caso”, afirma.

Junto ao volume de terra derramada, havia rejeitos da operação de mineração, principalmente produtos químicos que não são absorvidos  pela natureza. Conforme o volume de terra com produtos químicos desceu de Mariana rumo ao litoral do Espírito Santo, foram arrastados corpos, casas, carros, escolas, igrejas, animais e vegetação, deixando um rastro de produtos químicos potencialmente letais. 

O caso fez 19 vítimas fatais, incluindo crianças. 

  • Desde 2018, a anglo-australiana BHP Billiton enfrenta na Inglaterra a maior ação coletiva ambiental do mundo, movida por cerca de 700 mil atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão, em 2015;
  • As duas mineradoras são controladoras da Samarco, empresa responsável pela operação da barragem quando o desastre ocorreu, via joint venture;
  • Em 2023, a justiça inglesa acatou o pedido da BHP para incluir a Vale para dividir a responsabilidade – e consequentemente o valor da indenização e custos do processo – no julgamento.

Por que o caso foi parar na Inglaterra?

Logo depois que o desastre aconteceu, diversas partes no Brasil se mobilizaram para organizar o processo de reparação para as vítimas: as próprias empresas, o Ministério Público e também alguns particulares. Ana Carolina reforça que nenhuma dessas diversas tentativas deu certo, “na medida de serem insuficientes para compensar essas pessoas por todo o dano que foi causado”. 

“Existiram algumas tentativas de reparação feitas pela própria Samarco, enquanto empresa subsidiada pela Vale que operava a mina, e da própria Fundação Renova que foi criada também pela Samarco para fazer a tentativa de realocação e reparação das vítimas. Mas esse processo nunca foi completado, nunca foi suficiente para arcar com todos os danos e despesas que essas pessoas tiveram e têm direito a recuperar”, defende a advogada. 

A Fundação Renova é uma organização não governamental privada criada em 2016 com a finalidade de reparar danos causados para as vítimas do rompimento da barragem do Fundão. A instituição foi considerada ‘ineficiente na condução do processo de reparação dos danos’, segundo a Comissão Extraordinária de Acompanhamento do Acordo de Mariana, da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Leia aqui a decisão.

A legislação inglesa, conforme explica Ana Carolina, permite que os demandantes proponham a ação no domicílio do réu, no caso, a BHP na Inglaterra. A mineradora anglo-australiana controlava, em conjunto com a Vale, a operação da barragem do Fundão e as tomadas de decisões que levaram ao desastre socioambiental, e foram tomadas fora do Brasil.

“Embora o caso seja litigado nas cortes de Londres, a legislação utilizada é a legislação ambiental brasileira. Ela [legislação brasileira] tem conceitos bastante protetivos do meio ambiente, por exemplo, que o ente poluidor deve pagar pelos danos da ação que acarretou o dano ambiental. São aspectos muito relevantes, não só para esse caso, mas porque estamos conseguindo exportar a legislação brasileira num contexto de mudanças climáticas, num contexto em que o Brasil está tentando e conseguindo ter uma prioridade na pauta ambiental mundial”, alegam os advogados das vítimas. 

As vítimas

O escritório Pogust GoodHead representa, nesta ação, cerca de 700 mil atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão. Além de comunidade indígenas e quilombolas, há também pequenos negócios, companhias públicas, instituições religiosas e municípios, todos eles agrupados dentro da mesma ação. “As pessoas tentavam ter um acesso individual, mas ele era prejudicado. Mas não somos os advogados de um grupo de 700 mil; somos advogados de pessoas, de indivíduos”, diz Ana Carolina.

“Nós somos advogados, por exemplo, do Marcelo e do Michael Krenak, indígenas que estão ali pela pela região e que eles não só sofreram com relação à falta de acesso a água, que está até então poluída, mas também por uma questão de perda cultural; somos também advogados da Gelvana, mãe do Tiago, uma criança que foi arrastada pela lama; somos advogados da companhia de água, do município de Mariana, do município de Governador Valadares, que todos eles sofreram danos. É parte de um coletivo, mas eles são também individualizados”, diz a defesa. 

“Sou mãe do Tiaguinho. O que eu espero dessa audiência em Londres é que sejamos reconhecidos. Não sejamos só um número, mas sim reconhecidos e que a justiça seja feita, pelo menos lá”.

Gelvana Aparecida Rodrigues, mãe de Tiago Damasceno, 7, vítima do desastre em Bento Ribeiro (MG).

Para o Povo Krenak, por exemplo, que vive em uma reserva protegida próxima a Resplendor (MG), o Rio Doce é sagrado – chamado de Uatu, e o consideram seu pai e mãe espiritual. Com a chegada da onda de rejeitos tóxicos ao trecho do rio que margeia a reserva, junto com a massa de peixes mortos e contaminados que a acompanhava, os Krenak passaram a acreditar que Uatu havia morrido. O consumo de água e a pesca foram cessados com a tragédia, assim como prejudicado o ato de transmitir a cultura e os conhecimentos do povo Krenak.

Gelvana Aparecida, mãe de uma das vítimas fatais, em audiência pública na Câmara dos Deputados sobre a ação coletiva (Setembro/2023) (Crédito:Reprodução / Youtube Câmara dos Deputados)

A indenização

Na disputa, os advogados pedem R$ 230 bilhões (US$ 44 bilhões), incluindo 12% de juros/ano, na indenização. “Sabemos qual foi a perda de cada um dos nossos clientes. Se teve algum familiar envolvido vítima fatal, se estavam no no local, quem teve que correr, se eram trabalhadores da mina, se tinham alguma casa ou alguma propriedade imobiliária que foi destruída; a perda de arrecadação tributária envolvida em consequência desse desastre. É uma metodologia bastante detalhada para individualizar o quanto cada um de fato tem de direito”, explica a advogada.  

Em pontos percentuais, os danos totais estimados por grupo de reclamantes correspondem a: indivíduos – considerando indígenas e quilombolas (66%), municípios (23%), empresas (10%) e instituições religiosas e autarquias (1%).

“O que deveria chocar não é o valor da ação. O que deveria chocar é a extensão dos danos que jamais foram compensados, pelo menos não integralmente”, reforça Ana. 

O que esperar da audiência?

As sessões dos dias 31 de janeiro e 1º de fevereiro  ocorrerão na Corte de Tecnologia e Construção, em Londres, e vão discutir a condução do processo, o que será apresentado no julgamento – marcado para outubro –, o planejamento das próximas audiências e o cronograma dos procedimentos judiciais.

As audiências, a cargo da juíza Finola O’Farrell , são denominadas “Case Management Conference” (Audiência para Gerenciamento do Caso, em português).

“Trata-se uma audiência de organização do caso. A juíza e as partes precisam acordar prazos, como é quando cada parte tem que colocar petição, depoimento de testemunha, rolamento de testemunha, e produção de evidência. Diferentemente do que acontece no Brasil, em que a gente tem tudo isso no Código de Processo Civil, na Inglaterra não é assim. Lá os procedimentos dependem de cada caso, especialmente em um julgamento tão complexo quanto esse”, alega a defesa. 

Além do processo mais metódico e técnico, o Pogust GoodHead entende o momento como extremamente relevante para representatividade. Estarão presentes nas sessões algumas das vítimas do desastre, como Marcelo Krenak, vice-cacique de uma das oito comunidades; e Gelvana Aparecida Rodrigues, mãe de Tiago, de 7 anos, uma das vítimas fatais do desastre. 

“Diante desse longo tempo que estamos sofrendo, esse crime segue acontecendo, pois estamos ao lado do nosso rio sagrado e ele está contaminado, está morto. A gente espera que dessa audiência que possa ter avanço nas discussões e que a corte inglesa se sensibilize pelas situações, pelos casos das pessoas atingidas. Não somente pelo nosso povo, mas por todos que foram atingidos, porque o rio é sagrado para o povo Krenak, é um ente querido que esteve desde o começo da existência do povo. O rio esteve ao nosso lado nos protegendo, nos guardando, sempre que precisássemos, ele nos socorria. Diante desse crime que aconteceu, essas empresas que poluem, que matam, que devastam o meio ambiente, devem e tem que ser punidas”

Marcelo Krenak, vice-cacique da comunidade, que hoje vive em Resplendor (MG).

Membros de comunidades indígenas brasileiras reuniram-se hoje em frente ao Royal Courts of Justice, em Londres. Ao centro, o vice-cacique Marcelo Krenak. (Crédito:Francisco Proner / Divulgação Pogust Goodhead)

A Samarco S.A. anunciou um plano de recuperação judicial em setembro de 2023. Questionados se o caso pode atrapalhar, em cenário de vitória, o pagamento da indenização, Ana Carolina contesta: “A Samarco é um modelo falido. [A recuperação judicial] tem um peso sim, no sentido de que evidencia que os mecanismos de compensação e de indenização disponíveis no Brasil são não apenas insuficientes, mas inapropriados. Não é o nosso argumento principal, mas é de fato, uma evidência de que hoje não existe um mecanismo de reparação das vítimas no Brasil”, afirma. 

O escritório defende que o mais vantajoso seria fechar um acordo justo, suficiente e que cubra integralmente os danos que eles tiveram em decorrência desse desastre, considerando o tempo e recursos que essas empresas têm para arrastar essas decisões judiciais por um tempo prolongado, que não é favorável para as vítimas. Porém, não houve procura das empresas para fechar um acordo.

A defesa acredita que a audiência na Inglaterra já é ‘a maior e melhor esperança’ de reparação integral para as vítimas. 

“O caso tem um fator endêmico: a barragem rompeu no Brasil e o rio que foi poluído é brasileiro, as vítimas fatais são brasileiras, porém ele reverbera no mundo todo. Foi uma multinacional baseada fora que entra no Brasil, explora os recursos naturais, recolhe os seus proveitos, repassa para cadeia de comando os seus lucros e sai sem nenhuma responsabilização, sem sequer obedecer à própria legislação ambiental brasileira”, finaliza a advogada do escritório Pogust GoodHead.

O atual prefeito da cidade de Mariana, Celso Cota, reforça que o local sofreu perdas incontáveis.

“Não tem dinheiro que paga o sofrimento vivido por todas essas famílias, não tem dinheiro que paga o tempo perdido, não tem dinheiro que paga os impactos sociais vividos por todos nós. Mas está na hora de darmos um ponto final nessa história, está na hora de sermos devidamente indenizados. (…) Temos muita esperança que a semana que inicia seja uma semana de grandes avanços em relação à justiça. Esperamos que de forma definitiva e muito clara, que as mineradoras possam reconhecer o dano causado”.

Celso Cota, prefeito de Mariana (MG).

O que dizem as empresas

A BHP afirma que ‘refuta integralmente os pedidos formulados na ação ajuizada no Reino Unido’ e continuará com sua defesa no processo, que é desnecessário por duplicar questões já cobertas pelo trabalho em andamento, sob a supervisão dos tribunais brasileiros, e objeto de processos judiciais em curso no Brasil. A mineradora diz que segue em colaboração com a Samarco e a Vale em prol da reparação das vítimas.

“A Renova já desembolsou mais de R$ 33 bilhões em ações de reparação, dos quais aproximadamente 50% foram pagos diretamente às pessoas atingidas por meio de indenizações individuais. Mais de 200 mil autores no processo inglês já receberam pagamentos no Brasil”, informou a BHP Billiton em nota.

Procurada, a Vale, até o fechamento desta reportagem, não se pronunciou a respeito.