Seguindo à risca a cartilha do autoritarismo, Jair Bolsonaro transformou a difusão do medo em uma de suas mais eficazes armas para se perpetuar no poder. Balizado pela estratégia, durante a campanha, deixou de lado a discussão sobre programas de governo, impulsionou a paranoia sobre o “fantasma” do socialismo e tenta acuar o eleitorado ao repetir incessantemente que, se optar por Lula, o Brasil corre o risco de submergir em uma crise semelhante àquela que assola a Venezuela. A retórica não tem qualquer fundo de verdade: em 13 anos de governo, o PT não tentou replicar aqui os regimes ditatoriais de países como Cuba, Venezuela e Nicarágua, apesar dos repetidos elogios de Lula aos seus ditadores. Como os delírios do capitão não encontram guarida na realidade, ele opta pela mentira e aposta alto na estigmatização de cidadãos que buscam em solo brasileiro a construção de novos — e mais felizes — capítulos de suas histórias. Em meio à sórdida estratégia eleitoral, nenhum episódio exemplifica melhor a mesquinhez de Bolsonaro do que a falsa acusação de que, após fugirem do regime Nicolás Maduro, meninas venezuelanas, refugiadas em São Sebastião, área carente do Distrito Federal, se prostituem para “ganhar a vida”.

FATO O presidente visitou meninas venezuelanas refugiadas no Brasil, no dia 10 de abril de 2021, um sábado, no bairro de São Sebastião, na periferia do DF, acompanhado pelo general Luiz Eduardo Ramos, na época ministro-chefe da Casa Civil
FAKE Bolsonaro em entrevista ao blog Paparazzo Rubro-Negro, na sexta-feira, 14, chocou o País ao contar uma versão libidinosa sobre a visita à casa de meninas venezuelanas

O caso ganhou repercussão no dia 14, quando, no podcast do canal Paparazzo Rubro-Negro, no afã de popularizar suas mentiras, Bolsonaro declarou que “pintou um clima” ao avistar “umas menininhas bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas” de uma comunidade e contou que entrou na casa delas para checar o que estavam fazendo, sugerindo que as jovens haviam se embelezado para fazer programas. As “suspeitas” do presidente, que nem sequer foram comunicadas às autoridades competentes, logo foram desmentidas.

O Instituto Migrações e Direitos Humanos, que atua há mais de 20 anos junto a pessoas migrantes e refugiadas, esclareceu nunca ter identificado “indícios de redes de prostituição ou de exploração sexual infantil” das venezuelanas. Vinte e uma organizações da sociedade civil, incluindo a Conectas, acrescentaram que ele “promove desinformação sobre a comunidade venezuelana do Distrito Federal”.

Além disso, uma cabeleireira que estava no local da visita de Bolsonaro esclareceu ao portal UOL que, naquele dia, a garagem era palco de uma ação social para a oferta de serviços de salão de beleza às meninas. “O dia que a gente foi lá, foi só para arrumar as meninas [venezuelanas] e fazer o treinamento. Não tinha nada disso não [prostituição]. Achei elas muito responsáveis”, explicou Lu Silva. “Ele [Bolsonaro] só entrou, saiu, fez um debatezinho, falou mal da Venezuela, dizendo que as meninas estavam aqui, sendo bem acolhidas, só isso”, emendou.

A sequência de falsas acusações de Bolsonaro é apenas um dos traços problemáticos da declaração — que, aliás, foi verbalizada pelo menos em três situações distintas. O uso da expressão “pintou um clima”, tradicionalmente empregada em contextos libidinosos, chocou internautas porque foi sacada pelo presidente para se referir a adolescentes. Na internet, após a divulgação do vídeo, usuários levaram aos assuntos mais comentados do Twitter hashtags como “Bolsonaro pervertido” e “pintou um clima?”. O estardalhaço foi tão grande que, em uma medida desesperada, o QG do capitão rapidamente pagou mais de R$ 160 mil por anúncios no Google com a frase “Bolsonaro não é pedófilo”.

Entidades não deixaram o caso passar em branco. O Fórum Nacional de Conselhos e Comitês Estaduais para Refugiados, Apátridas e Migrantes divulgou nota em que aponta que “qualquer ‘clima’, com conotação sexual, envolvendo criança e adolescente, é uma violação de direitos fundamentais”. A entidade acrescentou que o assunto não pode ser explorado por conveniência política, uma vez que se trata de uma pauta séria e os dados são preocupantes: estudos acadêmicos indicam que uma em cada cinco refugiadas já sofreu violência sexual, e o Brasil ocupa a segunda colocação no ranking mundial de exploração sexual.

Gestão de danos

A péssima repercussão resultou na mobilização de uma força-tarefa no QG de Bolsonaro para a contenção de danos eleitorais. Escaladas como bombeiras, Michelle Bolsonaro e Damares Alves, que têm viajado o País em campanha, se apressaram em sair em defesa do capitão. No domingo, em um evento em Aracaju (SE), a primeira-dama declarou que o marido “tem mania” de recorrer à frase “se pintar um clima”, que usa de forma corriqueira, na tentativa de blindá-lo de acusações sobre o cunho sexual da expressão. O jornal O Estado de S.Paulo, porém, contabilizou que, em 128 lives gravadas entre 2019 e 2022, o presidente jamais recorreu à sentença. A ex-ministra dos Direitos Humanos, por sua vez, usou as redes sociais para dizer que estava embarcando do Nordeste rumo a Brasília para “dar uma resposta à altura” das críticas. “Quando Bolsonaro me levou para ser ministra, a ordem foi: ‘Vamos enfrentar a pedofilia, a exploração sexual de crianças e adolescentes’. Aguardem, mentirosos, que nos medem pela régua de vocês”, esbravejou.

CRISE NA CAMPANHA O presidente, Michelle Bolsonaro e a embaixadora de Juan Guaidó, María Teresa Belandria: tentativa de conter a repercussão negativa

“Se as minhas palavras, que, por má-fé, foram tiradas de contexto, de alguma forma foram mal entendidas ou provocaram algum constrangimento às nossas
irmãs venezuelanas, peço desculpas” Jair Bolsonaro, presidente da República

As duas não se movimentaram apenas publicamente. Nos bastidores, articularam uma conversa a sós com lideranças comunitárias ligadas às famílias venezuelanas, com o plano de fazê-las posar em frente às câmeras, fosse para uma fotografia ou um vídeo, a fim de transmitir um clima de “perdão” e “normalidade”. O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência e a Secretaria de Comunicação chegaram a fazer uma varredura em São Sebastião, mas as imigrantes, receosas quanto à exposição e aos desdobramentos do caso, resistiram ao encontro. Cederam somente no final da noite de domingo, quando entrou em cena a embaixadora do governo de Juan Guaidó em Brasília e aliada do Planalto María Teresa Belandria. A conversa, então, acabou agendada para a tarde de segunda-feira.

Segundo apurou a ISTOÉ, o encontro aconteceu em um imóvel ligado a Manoel Arruda, suplente de Damares Alves e presidente do União Brasil no DF — ele é, também, ex-assessor especial do Ministério da Justiça e Segurança Pública, órgão que cuida dos processos de imigração no País. O tête-à-tête ocorreu a portas fechadas, sem a presença de instituições de defesa dos direitos humanos ou de assistência aos migrantes e refugiados na capital e sem captação de imagem e voz. Na conversa, conforme relatos feitos à reportagem, Michelle e Damares repetiram diversas vezes que houve um “mal-entendido” e afirmaram que Bolsonaro jamais quis imputar às jovens a pecha de prostitutas — àquela altura, ainda não havia sido divulgada outra gravação em que o presidente diz, com todas as letras, que as adolescentes faziam “programas”. Apesar das explicações, as venezuelanas negaram-se a gravar vídeos para ajudar a desfazer o mal-estar gerado. Ao contrário, pediram uma retratação pública.

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa, o deputado distrital Fábio Félix (PSOL), que acompanha o caso, afirmou que sua equipe estuda se há brecha legal para defender a investigação de Michelle e Damares por abuso de autoridade, porque, embora as duas não ocupem cargos públicos, valeram-se da influência que exercem pela conexão com o Planalto para persuadir as venezuelanas a ouvirem-nas. “Acho que foi uma violência. Um convite a imigrantes feito por uma primeira-dama, junto a uma senadora eleita, é quase uma convocação. Elas, que estão construindo a vida fora de seu país, acabam, obviamente, se sentindo intimidadas”, comenta.

“O comportamento do Bolsonaro agora, no caso das meninas da Venezuela, é o comportamento de um pedófilo. E por isso é que ele ficou apavorado e tentou se explicar o mais rápido possível” Luiz Inácio Lula da Silva, candidato à Presidência

Em meio ao imbróglio, diante da recusa das venezuelanas em “limpar a barra” de Bolsonaro, restou ao presidente gravar um vídeo ladeado apenas por Michelle e Belandria para, em tese, se retratar. As falas do capitão, todavia, não demonstraram qualquer remorso. Ele, aliás, se eximiu da culpa pela exposição das adolescentes, acusando a esquerda de distorcer suas palavras, apesar de as gravações que circulam na internet não terem sido cortadas ou adulteradas. “Se as minhas palavras, que, por má-fé, foram tiradas de contexto, de alguma forma foram mal entendidas ou provocaram algum constrangimento às nossas irmãs venezuelanas, peço desculpas”, declarou, numa fala digna de vergonha nacional. Na mesma peça, Bolsonaro acrescentou que as imperdoáveis afirmações em entrevistas refletem apenas “uma preocupação no sentido de evitar qualquer tipo de exploração de mulheres que estavam vulneráveis”. Não explicou, no entanto, por que, então, não ofereceu o suporte do Estado às adolescentes, tampouco justificou o uso da frase “pintou um clima”.

CONTROLE RÍGIDO O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, determinou que a campanha do PT não associasse Bolsonaro ao crime de pedofilia (Crédito:Divulgação)

As desculpas esfarrapadas não contiveram o uso político do episódio. O PT busca faturar alto. Lula, em princípio, não falou abertamente sobre o caso no debate televisionado pela Band, no domingo, 16, porque o programa começou poucos minutos após o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, ordenar a remoção do vídeo das redes sociais e proibir o petista de vincular Bolsonaro ao crime de pedofilia. Mas, depois de feitos os cálculos políticos e as análises de segurança jurídica, o partido levou a gravação à propaganda eleitoral, sem um juízo de valor estridente. Ao final da peça, a narradora do comercial questiona: “Pintou um clima? Com uma garota de 14 anos? É esse homem que diz defender a família?” Dois dias depois, com uma postura mais incisiva, Lula declarou que o adversário demonstrou o “comportamento de um pedófilo”. “E ele percebeu isso, por isso ficou apavorado e tentou se explicar o mais rapidamente possível”, disse no Flow Podcast, com uma audiência de mais de 1 milhão de ouvintes. “Percebeu a bobagem que fez, acordou desesperado e foi dizer que o PT é culpado.” A ideia do ex-presidente é explorar a situação o máximo possível, sobretudo no meio evangélico, onde Bolsonaro ainda tem maioria.

Violência sexual

Apesar do sentimento de choque nacional, a cientista política Carolina Botelho, da Universidade do Estado do Rio e do Mackenzie, avalia que o uso da temática da sexualidade no discurso político de Bolsonaro não é novidade, mas sim uma estratégia de comunicação política. “Não é a primeira vez que ele fala de Venezuela, não é a primeira vez que ele fala de mulheres vulneráveis”, pontua. A analista, no entanto, acredita que, desta vez, o presidente escorregou na própria narrativa. “Não me surpreende vindo dele, que é autoritário e encara as mulheres como um grupo desprezível”, diz. “Não passa pela cabeça dele que são pessoas que precisam do apoio dele como presidente de uma nação, que essas meninas estão fragilizadas e dependem de políticas públicas governamentais para sobreviver.” Para Botelho, trata-se de um episódio de violência política e violência sexual.

DAMARES ALVES A ex-ministra dos Direitos Humanos procurou as refugiadas venezuelanas com a primeira-dama para pedir que elas gravassem um vídeo desfazendo o mal-estar. Ouviu um pedido de retratação (Crédito:Sérgio Lima)

“Quando Bolsonaro me levou para ser ministra, a ordem foi: ‘Vamos enfrentar a pedofilia, a exploração sexual de crianças e adolescentes’.
Aguardem, mentirosos,
que nos medem pela régua de vocês”
Damares Alves, ex-ministra dos Direitos Humanos e senadora eleita

O psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, reforça o coro e anota que a fusão dos assuntos “sexualidade” e “política” tem sido uma constante nos últimos quatro anos do governo Bolsonaro por seu potencial de mobilizar as pessoas e sublinhou que a tática é comum em regimes totalitários — afinal, é uma retórica que engaja a sociedade. “Adolf Hitler, Benito Mussolini, regimes totalitários de esquerda, todos eles lançam mão desse tipo de ferramenta”, diz. “É uma prática comumente encontrada em regimes que querem controlar as pessoas, e não aumentar sua capacidade de expressão”, prossegue. O professor ainda vai além e sustenta que a postura de Bolsonaro pavimenta o caminho para a ação de predadores sexuais. “Quando ele diz ‘pintou um clima’, está criando uma identificação com todos aqueles que sabem, mas nunca vão admitir, que essa é uma situação em que o predador pode agir”, explica.

“Quando ele diz ‘pintou um clima’, está criando uma identificação com todos aqueles que sabem, mas nunca vão admitir, que essa é uma situação
em que o predador pode agir” Christian Dunker, psicanalista e professor da USP

A oposição não deixará o caso passar em branco na Justiça. A deputada Maria do Rosário aposta que o presidente feriu o Estatuto da Criança e do Adolescente. “Tudo indica que as adolescentes não eram exploradas sexualmente, mas o fato de terem sido apresentadas como ‘prostitutas’ indica o desrespeito ao artigo 18 do ECA, o qual aponta que nenhuma criança ou adolescente deve ser tratada de forma degradante, cruel ou vexatória”, argumenta. A petista acrescenta que o episódio demonstra a contraposição entre o discurso de Bolsonaro, que ergue a bandeira dos bons costumes, e a prática. “Eles criam um pânico moral se dizendo defensores da família e, na verdade, agem para naturalizar o poder sexual e de opressão. Por exemplo, nessa caso, ele fala que defende as venezuelanas, mas, na verdade, as estigmatiza e as usa somente como objeto de um discurso”, conclui.

Rosário tem propriedade para falar sobre o assunto. Antiga algoz de Bolsonaro, é a prova de que a depravação no discurso do presidente ocorre de forma corriqueira. A deputada protagonizou o episódio lamentável em que o capitão disse que não a estupraria porque ela “não merecia”. A congressista aponta que as falas dele, ditas em 2014, ainda ecoam na sociedade e critica a inércia das instituições. “Essa família e essa horda se sentem acima da lei porque nunca foram responsabilizadas devidamente pela grande maioria de seus atos”, afirma. “É preciso desenvolver uma consciência no Brasil. Boa parte da população está adormecida por esse discurso de ódio.”

Aliados suspeitos

Apoiadores de Bolsonaro são acusados de crimes sexuais

GABRIEL MONTEIRO O vereador do Rio foi cassado depois de acusações de estupro e produção de pornografia infantil. Divulgou novamente seu apoio a Bolsonaro
THIAGO BRENNAND Apoiador de Bolsonaro e antigo aliado do ex-ministro Gilson Machado, o empresário foi acusado de várias agressões sexuais e fugiu para Dubai

Ustra e Stroessner

A observação da parlamentar encontra sustentação na história recente. Quem não se recorda do momento em que, em meio à votação do impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro homenageou Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos principais torturadores do regime militar? Quem não se lembra da exaltação do presidente a Alfredo Stroessner, ditador sanguinário que comandou o Paraguai e cometeu uma série de estupros de menores, especialmente de meninas virgens? Não bastasse o passado reprovável, Bolsonaro reúne, hoje, apoios deploráveis e reveladores, como o do ex-vereador Gabriel Monteiro, que teve seu mandato cassado, em agosto de 2022, por acusações de assédio, estupro e produção de pornografia infantil, e de Thiago Brennand, suspeito de agressões sexuais em série. O capitão ainda ostenta o voto do jogador Robinho, condenado por estupro. A barbárie que o presidente tanto denuncia na esquerda está, na verdade, em suas palavras e no seu círculo político. O bolsonarismo parece preso em uma frase que usa no cotidiano: “Acuse-os do que você faz, chame-os do que você é”.