Deportações de Trump podem repetir escalada violenta da América Central dos anos 90

EUA deportaram nos anos 1990 milhares de jovens que pertenciam a gangues surgidas em território americano. Esses grupos se restabeleceram em El Salvador, Honduras e Guatemala, espalhando medo pela região

Deportações de Trump podem repetir escalada violenta da América Central dos anos 90

O início da suposta “maior deportação em massa da história”, como foi definida a expatriação de imigrantes irregulares por representantes do governo de Donald Trump, nos Estados Unidos, chamou a atenção de toda a América Central.

Não à toa. A região amarga uma perigosa herança dos tempos de deportações da década de 1990: as gangues, conhecidas como maras, que surgiram nos Estados Unidos, compostas por imigrantes latinos e que, depois de extraditados, continuaram a praticar atividades criminosas em países como El Salvador, Guatemala e Honduras – gerando uma onda de violência nesses locais.

“As maras são produtos de processos históricos específicos, fruto da exclusão social e político-econômica. Elas podem ser denominadas como grupos de jovens marginalizados e desterritorializados, tendo inicialmente se formado nos anos 1970 e 1980 nos guetos californianos”, afirma o geógrafo Lucas Tadeu Assumpção Junqueira, formado pela USP e pesquisador do tema.

Entre 1979 e 1992, enquanto El Salvador passava por uma guerra civil, milhares de jovens migraram aos Estados Unidos para fugir da violência que assolava o país. Em território americano, esses imigrantes ilegais eram colocados à margem da sociedade, seja pela barreira linguística, pela própria discriminação e segregação racial ou mesmo pela precarização da força de trabalho.

Para Jonathan Hiskey, professor de Ciência Política na Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, além da guerra em El Salvador, jovens oriundos de governos ditatoriais da região, como da Nicarágua e da Guatemala, também buscavam refúgio nos Estados Unidos.

“Eles fugiam da violência e, quando chegavam na fronteira, procuravam asilo. Mas o ingresso legal dependia de quem o governo dos Estados Unidos apoiava na região. As estimativas mostram que os nicaraguenses, que fugiam de um governo opositor dos EUA, recebiam cerca de 87% dos vistos, enquanto guatemaltecos e salvadorenhos recebiam apenas 2% ou 3%”, afirma.

Marginalização e criminalidade

Segundo Hiskey, essa entrada de maneira irregular no país fazia com que esses imigrantes rechaçassem qualquer presença do Estado e se organizassem em comunidades com outros semelhantes.

Dessa forma, essa marginalização forçada pelo status ilegal e as barreiras citadas empurravam esses jovens à necessidade de se agrupar, impulsionadas pelas diversas violências perpetradas por outros grupos sociais, ou mesmo pelas forças de segurança.

“É neste contexto de violências que estes jovens passam a ampliar suas ações delitivas, como sequestros de pequenos comerciantes, empresários, familiares, entre outros, no território controlado pela organização. Igualmente no que se refere ao narcotráfico, voltado majoritariamente para distribuição, oferta e venda”, afirma o historiador Jacques de Novion, professor e pesquisador do Departamento de Estudos Latino-americanos da Universidade de Brasília (UnB).

Umas das primeiras e mais importantes dessas maras de jovens marginalizados a surgir foi a Barrio 18, com base nos guetos de Los Angeles, na Califórnia, que cooptava imigrantes latinos para fazer parte do grupo. Outro grupo de destaque que se forma na região é a Mara Salvatrucha (MS-13), que reuniu diversas outras pequenas maras após uma guerra entre gangues e promoveu a estruturação e institucionalização do crime organizado.

Deportação e crescimento

Com o aumento da violência perpetrada por essas maras, a administração de Bill Clinton (1993-2001) inicia um movimento de extradição em massa dos indivíduos que cometiam crimes e que pertenciam às gangues na Califórnia. Durante os dois mandatos de Clinton, 12,3 milhões de migrantes foram deportados do país.

De acordo com Hiskey, a falta de qualquer suporte aos países que recebiam os milhares de indivíduos expulsos fez com que esses grupos se fortalecessem na região de origem desses migrantes. Dessa forma, com governos fracos e ausentes da vida social, as gangues passaram a atuar com mais força na América Central.

“Essas deportações tiveram um papel central na transnacionalização das gangues pois, com o aumento das deportações, também se verifica o aumento das interações entre as gangues e cartéis de drogas”, diz.

“A adoção de políticas de pouco ou nulo efeito no combate à fome e no fortalecimento do bem-estar social dos indivíduos foi crucial para o surgimento das gangues. Os membros que hoje operam nas gangues são frutos de um longo processo histórico de construção do sujeito, sendo este moldado a atender a realidade das condições que lhes eram ofertadas, sem poder escolhê-las, ficando submetidos à própria sorte”, conclui.

Atualmente, segundo Novion, as maras MS-13 e Barrio 18 continuam a ser as duas mais importantes e atuam fundamentalmente no chamado Triângulo Norte, com presença em El Salvador, Honduras e Guatemala. Elas possuem ainda vínculos e relações com cartéis mexicanos, organizações criminosas e atuam no controle de terras, deslocamentos de produtos ilícitos e extorsões. Essas gangues são conhecidas por sua brutalidade.

Autoridades locais de El Salvador estimam que a MS-13 e Barrio 18 possuem cerca de 120 mil membros, espalhados por diversos países da América Central e do Norte.

“Elas atuam fundamentalmente no deslocamento e transporte dos diversos ilícitos movimentados pelos tráficos. As rotas de produção, distribuição e oferta, sejam aéreas, marítimas, terrestres e virtuais, movimentam simultaneamente os tráficos de drogas, armas, pessoas, órgãos, tecnologia, dinheiro, animais, biodiversidade, pedras preciosas, entre muitos outros”, diz Novion.

No final dos anos 1990 e ao longo dos anos 2000, El Salvador, Honduras e Guatemala tiveram um aumento no número de homicídios por 100 mil habitantes e passaram a aparecer no topo da lista dos países mais violentos do mundo do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes.

Repetição?

Cerca de 30 anos depois da primeira onda de deportações de imigrantes latino-americanos, o governo de Donald Trump promete reeditar, de certa forma, as medidas e deportar supostos “criminosos”.

Para Jacques de Novion, da UnB, há um paralelo entre o passado e o presente, com a contínua repetição de políticas violentas e intolerantes, de encarceramento e deportação em massa, que já se demonstraram fracassadas.

“[Os Estados Unidos] insistem na política truculenta e de resultados desastrosos, como no Triângulo Norte, e agora também apoiados pelo governo de El Salvador. Essa repetição atual, tendo como parâmetro as deportações de imigrantes realizadas neste momento pelos Estados Unidos, somada à política de encarceramento em massa do governo Bukele, em El Salvador, infelizmente, tende a parir um outro tipo de estrutura e capacidades destas organizações criminosas”, diz.

Já para Jonathan Hiskey há uma pequena diferença: Trump vem mirando comunidades inteiras. “No início dos anos 2000, havia uma população significativa que tinha antecedentes criminosos que eram, de fato, o alvo das campanhas de deportação. Agora, vejo comunidades inteiras com medo, famílias, pessoas que têm negócios. Isso diferencia a deportação de Trump da de Clinton, Bush e Obama”, diz.

O que não muda, no entanto, é a falta de suporte aos governos que recebem esses imigrantes e o futuro nebuloso que políticas públicas como essas podem causar. “Tanto naquela época como agora, estamos deportando pessoas, deixando-as no aeroporto e não fazendo nada sobre o que vem a seguir”, afirma.