A Suprema Corte de Israel conseguiu uma primeira vitória sobre o governo extremista do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, com duas mulheres à frente das salvaguardas da democracia: Esther Hayut, a presidente da Suprema Corte, e Gali Baharav-Miara, a procuradora-geral. Na última quarta-feira, por 10 votos a 1, a mais alta Corte do país determinou que um criminoso condenado não pode assumir cargo público — o que atinge diretamente Arye Dery, aliado-chave de Netanyahu e vice- primeiro-ministro que acumula as pastas da Saúde e do Interior.

Condenado por fraudes fiscais, Dery fez acordo no início de 2022: renunciaria à cadeira no Parlamento, pagaria multa e teria liberdade condicional — mas não se tornaria ministro. Quebrou o trato. E prometeu que derrubaria o governo caso a Justiça o impedisse de assumir os cargos, como explica Karina Stange Calandrin, professora de Relações Internacionais na Universidade de Sorocaba (UNISO) e coordenadora de Projetos do Instituto Brasil-Israel. Ainda na quarta-feira, Dery afirmou que não renunciaria. A oposição, minoria no Parlamento (o Knesset, que é dominado pelos ultrarradicais), por sua vez, bradava que manter o ministro desqualificado no gabinete mostrava desrespeito de Netanyahu à Justiça, o que ameaçaria a própria democracia.

A tensão chegou às ruas. No dia 14, pelo menos 100 mil pessoas protestaram em Tel Aviv, Jerusalém e Haifa contra o governo e seus planos de enfraquecer o Judiciário. As manifestações se estenderam pelos dias seguintes e resultaram em repressão violenta e prisões. O temor é que impor a reforma judiciária vise a restringir a atuação da Suprema Corte, que poderia ter suas decisões anuladas por maioria simples do Parlamento, onde o governo tem 64 das 120 cadeiras (mais que a maioria simples). Impedida a independência judicial, seria facilitada a absolvição de criminosos e do próprio Netanyahu, que é julgado por corrupção.

A democracia corre riscos em Israel; Benjamin Netanyahu tenta enfraquecer a Justiça
SALVAGUARDA Para Esther Hayut, o projeto do governo pretende ‘esmagar o Judiciário’ (Crédito:THOMAS COEX)

Reação dos juízes

Esther Hayut, a presidente da Suprema Corte, já havia chamado o projeto governista de “ataque desenfreado ao sistema judiciário” e “golpe fatal” contra a independência dos magistrados, que perderiam o poder de fiscalizar atos do Executivo. Seria um “cheque em branco ao Parlamento”, inclusive para cercear direitos de minorias. Gali Baharav-Miara, a procuradora-geral, falou que as medidas “desequilibrariam o sistema de freios e contrapesos, empurrando valores democráticos para o precipício”. Ela disse que as condenações de Dery, nomeado ministro, “quebram a confiança do público na ética dos funcionários escolhidos”.

A reforma permitiria que qualquer projeto do Executivo fosse aprovado no Parlamento (só seria barrada se quatro coligados votassem contra), possibilitando mesmo a eliminação da “presunção de razoabilidade” (que permite a revogação de lei ou decisão do governo, como no caso de nomear altos funcionários que tenham violado a legislação). Seria configurado um “golpe de Estado”, como classifica a oposição.

Além de Netanyahu, outros acusados de crimes ou já julgados poderiam seguir assumindo cargos. Itamar Ben-Gvir, condenado por racismo, está à frente do Ministério da Segurança Nacional e até conseguiu mudar e legislação para incorporar a polícia à pasta. Na mesma linha seguem o autoproclamado homofóbico Bezalel Smotrich, ministro das Finanças; Avi Maoz, da Educação; e Yariv Levin, titular da Justiça e encarregado da apresentação do projeto de reforma do Judiciário no Parlamento.

A ameaça à única democracia efetiva do Oriente Médio provocou preocupação no exterior. Judeus americanos, na maioria liberais que enviam subsídios econômicos a Israel, reagiram de imediato. O próprio Joe Biden, presidente dos EUA, declarou que não fala com extremistas e até enviou seu secretário de Defesa, Anthony Birkin, ao país. O projeto antidemocrático de Netanyahu ainda pode romper o diálogo com países árabes — e parcerias já acordadas, como a extração de gás no Mar Mediterrâneo, com o Líbano, ou relações retomadas de empresários israelenses com a Arábia Saudita.

A democracia corre riscos em Israel; Benjamin Netanyahu tenta enfraquecer a Justiça
IMPASSE Arye Dery (à esq.) diz que não renuncia; oposição exige que Benjamin Netanyahu demita o aliado (Crédito:Ronen Zvulun)

Mais de 90 países da ONU também manifestaram “profunda preocupação” pelas retaliações contra palestinos por parte do atual governo. Os assentamentos na Cisjordânia são, atualmente, cidades com condomínios, comércios e estradas ligadas a centros urbanos, com total de meio milhão de habitantes, incentivados economicamente pelo governo a morar na região — e 20% deles são árabes israelenses. Sobre essa questão, a professora Karina Calandrin destaca: “As vertentes radicais querem a totalidade do território, o que levaria Israel a assumir o papel de país de apartheid”.