Foi esse tipo de atitude transgressora que Bolsonaro repetiu três dias depois da cerimônia na capital gaúcha, em uma manifestação golpista em frente ao Palácio do Planalto, quando o fotógrafo Dida Sampaio, do jornal O Estado de S.Paulo, acabou agredido com socos e pontapés por pessoas que participavam do protesto. Diante do veto do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao nome de Alexandre Ramagem para a direção-geral da Policia Federal, Bolsonaro, sem usar máscara e, mais uma vez, promovendo aglomerações, acusou uma interferência indevida no Poder Executivo pelo Judiciário e praticamente conclamou seus seguidores a um golpe militar. “Vocês sabem que o povo está conosco, as Forças Armadas, ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade, também estão ao nosso lado, e Deus acima de tudo”. E completou: “Vamos tocar o barco. Peço a Deus que não tenhamos problemas nessa semana porque chegamos ao limite, não tem mais conversa. Tá ok? Daqui para frente, não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição. Ela será cumprida a qualquer preço.” A fala de Bolsonaro foi interpretada como uma clara tentativa do presidente de usar, para engrandecer seu governo, o capital político das Forças Armadas e insistiu na sua permanente pressão autoritária e em ameaças contra os outros poderes da República.

Marcos Corrêa/PR

“Jamais aceitaria a ideia de substituir o general Pujol. Seria desonroso para mim e uma quebra dos valores que nós cultuamos” Luiz Eduardo Ramos, ministro

Conflito entre poderes

O fato é que Constituição tem sido cumprida, conflitos entre poderes podem ser superados com diálogo e não cabe ao presidente, diante de crises que fazem parte do jogo democrático, incendiar as massas e ameaçar com rupturas institucionais, principalmente contando com o apoio das Forças Armadas, que não estão exatamente ao seu lado, como ele quer fazer crer. Há divergências importantes entre os altos oficiais da ativa (e também da reserva) e Bolsonaro. Se o presidente procura manter uma tensão ameaçadora sobre a democracia o tempo todo, para as Forças Armadas trata-se de uma questão pacificada. “Acho que a ameaça à democracia está fora de questão”, disse para a IstoÉ o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo. “Vejo as Forças Armadas com um posicionamento institucional e sem disposição para entrar em aventuras”. E foi além: “As pessoas precisam entender que as Forças Armadas são uma instituição de Estado, não de governo e não devem se meter em briga entre poderes e nem tomar atitudes que provoquem posicionamento partidário”.

“Acho que a ameaça à democracia está fora de questão. Vejo as Forças Armadas sem disposição para entrar em aventuras” Santos Cruz, general da reserva (Crédito:Suamy Beydoun)

Essa mistura entre Estado e governo faz parte da estratégia de Bolsonaro para confundir a população e as forças políticas do País. No dia seguinte ao seu discurso destrambelhado, uma nota divulgada pelo Ministério da Defesa e assinada pelo próprio ministro, Fernando Azevedo e Silva, colocou panos quentes na situação. “As Forças Armadas cumprem a sua missão Constitucional”, disse a nota. “(Elas) estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade. Este é o nosso compromisso”. Azevedo e Silva tornou explícito que os militares seguem a Constituição e servem ao Estado brasileiro e não ao governo, apesar de revelar incômodo com a interferência do STF na nomeação do diretor-geral da PF e na suspensão da expulsão de 34 diplomatas venezuelanos. Para o professor da Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Antonio Jorge Ramalho, ex-assessor especial do ministro Defesa Jaques Wagner, hoje o Alto Comando tem muito apreço à democracia. “Há gente levando a sério que está em andamento um golpe, mas com os atuais comandantes militares isso não iráde acontecer”, afirma. “Bolsonaro tenta usar o prestígio das Forças Armadas para legitimar o próprio governo e confunde, propositalmente, governo e Estado”. A demonstração mais clara desse esforço pode ser detectada do aumento dos convites para militares da ativa ocuparem cargos no Executivo. É uma tentativa de cooptação.

A politização das casernas, um processo que Bolsonaro tem levado adiante com afinco, é o grande assunto neste momento no Alto Comando das Forças Armadas. Da parte da Presidência há um envolvimento progressivo dos oficiais com o governo por meio da oferta de cargos. Tenta-se com isso criar um dissenso interno, estabelecendo uma divisão entre os que estão dentro e os que estão fora. Militares da ativa são como diplomatas e não podem dizer o que pensam. Mas quando um deles assume um cargo no governo, passa a ter posições políticas e não mais a responder para seu superior militar e sim para seu chefe na repartição pública ou para o presidente. Nesse caso, ele assume o risco de adotar posições contrárias às instituições militares e de quebrar a hierarquia, o valor supremo dos quartéis. “Não tenho preconceito nenhum do sujeito trabalhar no governo”, afirma Santos Cruz. “Mas com o aumento de gente da ativa servindo ao Poder Executivo, começa a haver alguma politização”.

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Politizaçao da caserna

No seu primeiro ano de mandato o presidente aumentou o número de oficiais da ativa cedidos ao governo de 1118 para 1271 membros e, em fevereiro deste ano, havia cerca de 3 mil militares da ativa e da reserva ocupando cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão no Executivo. No final de 2019, segundo levantamento feito pela Folha de S. Paulo, havia 2,5 militares em cargos de confiança no governo, 325 a mais do que no governo Temer. Cada um desses militares passa a ser um defensor do governo na medida em que começa a usufruir do salário, dos benefícios e do status que o novo cargo confere e tende a deixar de lado suas responsabilidades militares. Atualmente, 8 dos 22 ministérios de Bolsonaro são ocupados por oficiais de alta patente. O número é maior do que o verificado em vários governos da ditadura, como no de Emilio Garrastazu Médici, de Ernesto Geisel e de João Baptista Figueiredo, que contavam com sete militares cada. Proporcionalmente, o governo brasileiro tem mais membros das Forças Armadas na cúpula do que a Venezuela. “A colocação de militares da ativa no governo e uma opção de gestão”, justifica o general da reserva Maynard Santa Rosa, ex-secretário de Assuntos Estratégicos de Bolsonaro. “Eu, particularmente, não gosto desta ideia, pois ela pode levar à politização, mas ainda não vejo isso acontecer”. Para Santa Rosa, essa politização aconteceria se houvesse uma ideologia orientando os militares, algo que não pode ser verificado. O aumento da presença militar no governo, segundo ele, nada tem a ver com o trabalho das Forças Armadas, mas com uma necessidade administrativa. “Quando Bolsonaro assumiu, ele não tinha quadros civis para colocar no governo e o que tinha à mão eram os militares”, lembra. “Ele fez isso por necessidade. Os militares são preparados para exercer muitas funções e se apresentavam com uma reserva de mão de obra qualificada”.

REPRESSÃO Bolsonaro teve um encontro com o tenente-coronel Sebastião Curió de Moura, o “Major Curió”, agente da ditadura que atuou no combate à Guerrilha do Araguaia. Curió foi denunciado por crimes como sequestro, assassinato e tortura. Mesmo assim, foi chamado de “heroi” no Twitter da Secretaria de Comunicação do governo, que está sendo investigada pela Procuradoria Federal. (Crédito:Divulgação)

Agressões à imprensa

Na ocasião em que foi deflagrado um movimento grevista da Polícia Militar do Ceará, em março de 2019, o vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva, disse que quando a política entra pela porta da frente de um quartel, a disciplina e a hierarquia saem pela porta dos fundos. E essa máxima nunca foi tão atual. O que Bolsonaro prega quando conclama seus colegas de farda a aderirem a um movimento golpista é uma ofensa à disciplina e à hierarquia. Há militares, políticos e juristas que viram as decisões do STF como indevidas, já que interferem em competências do Executivo. Mas para Bolsonaro isso serviu de munição para radicalizar o discurso. O presidente atua numa zona de interesses cinzenta, recusa o diálogo e aproveita o contexto para fazer ilações antidemocráticas. O próprio Mourão usou seu Twitter para dizer que as Forças Armadas defendem a democracia. “Neste momento em que se procura turvar o ambiente nacional pela discórdia e intriga, é importante deixar claro, como o presidente Jair Bolsonaro declarou ontem, que ninguém irá descumprir a Constituição”, disse.

“A colocação de militares da ativa no governo é uma opção de gestão. Eu não gosto dessa ideia, pois ela pode levar à politização” Santa Rosa, general da reserva (Crédito:Alan Marques)

As Forças Armadas também parecem discordar de Bolsonaro nas suas ameaças permanentes a jornalistas e à imprensa. Depois do ataque covarde de militantes bolsonaristas contra um fotógrafo que estava fazendo seu trabalho, o presidente mandou várias vezes jornalistas que lhe faziam perguntas calarem a boca. “Estou tendo influência sobre a Polícia Federal? Isso é uma patifaria. Cala a boca, não perguntei nada”, disse quando os repórteres lhe perguntaram, na terça-feira 6, se ele havia pedido a troca no comando da PF. Com sua fala, Bolsonaro repetiu o comportamento do general Newton Cruz, em 1983, durante a ditadura, quando ele ofendeu e agrediu o jornalista Honório Dantas. Questionado por Dantas sobre a falta de democracia no País, Cruz respondeu que “democracia é cumprir a lei”, falou para ele calar a boca e bateu no gravador do jornalista. Na sequência, foi às vias de fato, segurou o repórter e exigiu um pedido de desculpas. Bolsonaro parece ir no mesmo caminho agrressivo.

IMPASSE Segundo Mourão, quando a política entra pela porta da frente do quartel, a hierarquia sai pela porta dos fundos (Crédito:Tomaz Silva/Agência Brasil)

Numa demonstração de que as Forças Armadas não estão alinhadas com Bolsonaro nessa disputa com a imprensa, o Ministério da Defesa afirmou, na sua nota, que “a liberdade de expressão é requisito fundamental de um País democrático e que qualquer agressão a profissionais de imprensa é inaceitável”. Para o general Santos Cruz, o conflito do presidente com a imprensa “é resultado de um posicionamento pessoal e é de responsabilidade individual”. “O que está tumultuando a situação não é a imprensa, mas o fanatismo das mídias sociais”, disse. Já na avaliação de Santa Rosa, “o presidente é uma personalidade inquieta, fala o que sente e não raciocina antes de falar”. “Na minha opinião, os ataques entre imprensa e governo são recíprocos. Há setores da imprensa que em vez de dar notícias, dão opinião e isso se choca com as convicções do presidente”, completou.

APARELHAMENTO Ramalho alerta para o risco de politização das Forças Armadas (Crédito:Divulgação)

Soube-se nos dias seguintes ao evento em Porto Alegre, em que houve o cumprimento com o cotovelo, que Bolsonaro ficou muito incomodado com a atitude civilizada de Pujol e a considerou uma ironia ou um desrespeito. Ficou perturbado. No início da semana circularam boatos de que Bolsonaro gostaria de substituir Pujol pelo atual Ministro da Secretaria de Governo, general da ativa Luiz Eduardo Ramos. Provavelmente, se fizesse isso, ele perderia o apoio de seus pares, pois seria uma prova definitiva de politização das Forças Armadas. Embora o presidente esteja investido da prerrogativa para nomear o comandante do Exército, como lembra Santa Rosa, essa mudança não seria conveniente politicamente. “Neste momento seria uma temeridade substituir Pujol”, disse. O próprio Ramos usou seu WhatsApp para desmentir os boatos. “Jamais aceitaria tal ideia, sem mencionar que seria desonroso para mim e uma total quebra dos valores que todos nós cultuamos, como antiguidade e merecimento”, afirmou.

MISSÃO Em nota, o ministro da Defesa promoveu a democracia e a Constituição (Crédito:Marcos Corrêa/PR)

Desleixo com a pandemia

“O general Pujol tem um currículo fantástico, é um comandante exemplar, uma inteligência reconhecida e que não se mete em confusão de politicagem”, completa Santos Cruz. Entre outras conquistas, Pujol foi o primeiro colocado na sua turma de cavalaria na Academia Militar de Agulhas Negras (AMAN) e chefiou o Centro de Inteligência do Exército. Para os militares, o sistema de promoção que levou Pujol ao Comando do Exército é justo e legítimo, premia oficiais por mérito e não deve sofrer interferências de qualquer governante. “Seria um desastre se Pujol saísse, seria uma interferência indevida da Presidência e poderia levar a uma ruptura com o governo”, diz Ramalho. Se Bolsonaro acredita que irá dar um golpe com o apoio dos militares da ativa está muito enganado. Apesar de ser o Comandante em Chefe das Forças Armadas, sua vontade política não será imposta nas casernas. Em vez de promover rupturas democráticas, os militares querem manter as instituições funcionando com vigor e, neste momento crítico, propõem uma união de forças contra a pandemia de coronavírus, o problema realmente grave que afeta o País. Quando compareceu ao Comando Militar do Sul, que conta com 50 mil homens e agora está sob a chefia do general Valério Stumpf, Bolsonaro foi recepcionado no Centro de Operação de Combate à Covid-19, que desinfeta ambientes públicos e distribui cestas básicas para a população. As autoridades militares mantiveram um metro de distância uma das outras durante a cerimônia, que contou com cerca 40 participantes. E mostraram que estão muito mais preocupadas com a saúde das pessoas do que com a política insana de Bolsonaro.

Imprensa sob ataque

As agressões aos jornalistas pelo presidente e seus seguidores saíram do campo virtual, das mídias sociais, e se transformaram em violência física e ofensas verbais. No domingo 3, manifestantes golpistas agrediram de maneira covarde o fotógrafo Dida Sampaio, do jornal O Estado de S. Paulo com socos e pontapés. Dois dias depois, completamente descontrolado, Bolsonaro suspendeu uma entrevista aos gritos


PRESENTE Na semana passada, o presidente, questionado sobre a troca de comando na Polícia Federal teve um rompante de agressividade e mandou os jornalistas que o aguardavam na frente do Palácio do Planalto calarem a boca (Crédito: Pedro Ladeira)

 

PASSADO O caso de Bolsonaro lembrou uma agressão cometida pelo violento general Newton Cruz, em 1983. Diante de um pergunta incômoda, Cruz falou para o jornalista Honório Dantas calar a boca e tirou o gravador de suas mãos (Crédito:Arquivo CB/D.A Press)

 

 

 


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