Um personagem entra para a história quando sua vida é uma simbiose da pessoa certa, na hora certa e no local certo: é a própria definição de Napoleão Bonaparte. Para muitos, foi quase um semi-deus; para outros, um general sanguinário que levou à morte milhões de europeus. Uma nova biografia revela que ele não foi nem uma coisa, nem outra: “Napoleão – O Homem Por Trás do Mito” mostra o líder francês como um homem normal, com qualidades e defeitos, bem mais próximo de um produto de seu contexto histórico do que de um super-herói invencível.

LANÇAMENTO Napoleão: O homem por
trás do mito (Adam Zamoyski/Ed. Planeta/Crítica, R$ 179) (Crédito:Divulgação)

Em suas quase 800 páginas, o historiador britânico Adam Zamoyski disseca a vida de Napoleão de maneira tão detalhada que nos dá a impressão de conhecê-lo pessoalmente. A narrativa traz fatos e cenários geopolíticos de maneira tão natural, com tantos detalhes, que o leitor muitas vezes se sente dentro da cabeça de Napoleão e compreende as razões que o levaram a fazer determinadas escolhas. Mapas das batalhas ajudam a entender a grandeza de suas vitórias militares. Goste-se ou não do biografado, é inegável que sua vida foi uma das mais extraordinárias da história da humanidade.

Napoleone Buonaparte nasceu em um meio simples na ilha da Córsega, um dos lugares mais pobres da Europa. Os sete membros da família viviam numa casa de 40 metros quadrados. Por pouco a origem italiana não impediu o jovem de ingressar no exército francês: a Córsega virou colônia francesa em maio de 1769, três meses antes de Napoleão nascer. Ele aprendeu a ler em casa e era obcecado por matemática. Aos nove anos aprendeu francês, idioma que nunca dominou bem e cujo sotaque corso o acompanharia por toda a vida.

Na Academia Militar de Brienne, destacou-se pela curiosidade intelectual. Nos invernos, liderava os colegas e os organizava em exércitos para as guerras de bolas de neve, táticas que tirava de livros e da sua própria intuição. Em 1793, com os rumos que a revolução havia tomado, a França estava imersa em uma guerra civil.

É nesse o ambiente que o jovem Napoleão fez uma rápida ascensão militar até se tornar comandante do exército na campanha contra a Itália, sua primeira grande vitória. Ele compreendeu logo que sua relação pessoal com os soldados era mais importante do que com o burocrático e frágil governo francês. Falava de igual para igual com eles e aumentou seus salários sem consultar os políticos. Sua memória era extraordinária: lembrava-se de detalhes pessoais e até dos nomes de familiares de soldados que havia encontrado uma única vez. Após voltar para a França de uma campanha na Lombardia, onde entrou de forma triunfal em Milão, desfilando sozinho em um cavalo branco, foi recebido “como os israelitas esperam pelo messias”. Nascia o mito.

IMPERATRIZ Josefina: interesseira e manipuladora (Crédito:Divulgação)

Napoleão teve a capacidade de entender o poder da imagem e levou a propaganda a níveis inéditos. Seus relatórios fraudulentos das batalhas, em que exagerava as baixas dos inimigos e escondia os próprios erros, eram colados pelas ruas de Paris e aumentavam a aura heroica do jovem general. Seus retratos, alguns encomendados e outros espontâneos, viraram febre entre os artistas e aumentavam o culto à personalidade do novo ídolo do povo francês. Batalhas em lugares exóticos, como o Egito, ajudavam a criar essas imagens memoráveis. O talento de Napoleão para o combate ajudava: na Batalha das Pirâmides, sua estratégia vitoriosa levou à morte apenas 29 franceses, contra mais de dois mil egípcios. A associação divina inspirada por episódios como esse se tornaria inevitável.

Tímido, ele só se envolveu emocionalmente já adulto. O primeiro e grande amor foi Josefina, uma viúva mais velha apresentada no livro como interesseira e manipuladora, que não se furtava a frequentar a cama de outros amantes. O sucesso e a fama permitiram a Napoleão ascender politicamente até tomar o poder, em 1799, e se tornar Cônsul da França no golpe conhecido como “18 de Brumário”. A biografia de Zamoyski deixa claro sua obsessão por controle, mas não o julga com os olhos de hoje, analisando em detalhes o cenário político da época. Em um país fragmentado como a França, sua liderança era, sim, a única forma de trazer paz à nação e a uma região extremamente instável, a Europa dos séculos 18 e 19.

Quando se pensa em Bonaparte, logo vem à cabeça a imagem do conquistador violento, mas esquecemos que esse era um comportamento comum a outros líderes da época como Alexandre I, da Rússia, e Francisco I, na Áustria: o objetivo primordial foi, para todos eles, a expansão territorial que rendia benefícios econômicos e políticos. Napoleão ainda promoveu avanços sociais, instituiu novos sistemas de tributação, realizou avanços tecnológicos e códigos de leis que serviram de inspiração para constituições mundo afora. Fez e desfez acordos de paz, mas o livro deixa claro que suas guerras não eram decisões unilaterais – Inglaterra, Áustria, Prússia e Rússia lutavam pela hegemonia européia. Não foi à toa que, depois que Napoleão se autocoroou imperador, esses países se aliaram para destroná-lo.

COROAÇÃO Apoio da Igreja: Napoleão se tornou imperador com a benção do papa (Crédito:Divulgação)

Inspirado por grandes nomes da antiguidade, como César e Aníbal, Bonaparte era muito poderoso para ser deixado quieto em seu canto. Ele tentou fazer a paz diversas vezes, chegando a se casar com a filha do imperador Francisco I, Maria Luisa de Áustria, com quem teve um único filho, Napoleão II, morto aos 21 anos. Mais tarde, sua soberba e o medo de um golpe o levaram a cometer erros. Uma de suas últimas campanhas, contra a Rússia, foi a prova de que o poder havia lhe subido à cabeça: após investir pesado para conquistar Moscou, perdeu quase todo seu enorme exército tentando voltar para casa durante o rigoroso inverno.

Deposto e exilado na ilha de Elba, conseguiu voltar à França em uma última tentativa e reinou mais uma vez por cem dias. Até que foi humilhado pela Inglaterra na Batalha de Waterloo, cuja derrota o levou ao exílio definitivo em outubro de 1815, na distante Ilha de Santa Helena, na costa da África. Lá o grande herói francês viveria até os 51 anos. Faleceu em 5 de maio de 1821, numa casinha simples, em meio a camponeses e agricultores, personagens bem distantes daqueles com os quais estava acostumado a conviver quando era o imperador mais temido da Europa. Não foi um guerreiro invencível, nem um aventureiro sanguinário: foi um general talentoso e corajoso, além de um político intuitivo que compreendia os desejos do povo. Por qualquer prisma que se olhe, foi um homem fascinante que mudou os rumos de todo o mundo.