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Os versos da música são ótimos, estão em todos os carnavais, mas verso é verso, não dá para ninguém, muito menos para um presidente da República, viver na base do “deixa a vida me levar, vida leva eu”. Há, no entanto, uma exceção que infelizmente encarnou na figura que nos governa: o capitão Jair Messias Bolsonaro. Enquanto os brasileiros sofrem as agruras de tempos difíceis em quase todos os departamentos da vida, o capitão, esteja ele aboletado ou não em um barco, iate ou coisa que o valha, demonstra que o seu destino vai, literalmente, de vento em popa. E ele não sente o menor constrangimento em rir e mergulhar, enquanto o País padece, imerso que está, em uma crise sanitária e econômica que parece não ter fim – daquelas que não adianta virar Santo Antonio de ponta cabeça, não adianta colocar São Judas Tadeu olhando para a parede, não adianta trocar santos de lugar dentro de casa ou nas paróquias.

MERGULHO Bolsonaro no mar: quem está com a água no pescoço é o povo brasileiro (Crédito:Divulgação)

Já que falamos em vento e em popa, que lembra água, cabe assinalar que também não resolvem oferendas à rainha do mar. O presidente ri, e ri feito o protagonista do filme “O homem que ri”, de 1928, inspirado em livro homônimo do escritor francês Victor Hugo, verdadeiro criador do personagem Coringa, em meados do século 19. Ah, não se pode esquecer: os três ou sete pulinhos dados nas ondas igualmente não estão solucionando nada para a esmagadora maioria da população. Parece que estamos, aqui, brincando — mas não estamos não, é só para desanuviar um pouco. A coisa é séria! Vale a fé! Iemanjá é mãe, mas tudo fica muito difícil com Bolsonaro.

O capitão não possui o menor sentimento de empatia em relação aos brasileiros, e isso é grave: basta ele consultar o seu ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Os quase duzentos e cinquenta mil mortos pela Convid-19 sabem que o general é expert em medicina — e põe esperteza nisso. Ele poderá dizer qual é o transtorno de personalidade que caracteriza Bolsonaro. A inanição do governo em conter o avanço da pandemia provoca um efeito cascata que se espraia pelos mais diversos setores. O primeiro é nessa própria área: éramos respeitados, havia mais de um século, em todo o mundo pela excelência do serviço público de vacinação. Bolsonaro zerou tudo. Mas, para ele, seus familiares e aduladores mais próximos, as coisas vão bem. Apesar de o carnaval ter sido cancelado devido à pandemia, o presidente aproveitou e fez seu bloco particular, inventou folga esticada e foi para o litoral de Santa Catarina curtir as mordomias ofertadas pelos militares que administram o Forte Marechal Luz, colônia de férias do Exército, na cidade de São Francisco do Sul. O que importa se a economia está cada vez mais anêmica, com quatorze milhões de desempregados desesperados? O que importa se uma multidão de trabalhadores informais passam fome? Claro que é sabido que no País fenece cada vez mais a democracia social, até porque ela nunca existiu em nosso chão, mas o fosso que se dá entre a realidade social e antropológica brasileira e o comportamento do mandatário é algo que nunca nos foi tão marcante. Enquanto tantos e tantos estômagos têm dor de fome, enquanto tantos e tantos enfermos aguardam vagas em UTIs, enquanto cresce o número de cidades carentes de aparelhos de oxigênio, ele se diverte.

Há quem tenha incomodado Bolsonaro na praia. É gente que acha que o sol nasceu para todos, enquanto o presidente tem certeza de que o sol nasceu somente para ele

A situação tende a subir no quesito dramaticidade caso a equipe econômica não encontre um jeito de viabilizar a continuidade do auxílio emergencial. Acompanhado pelo secretário da Pesca, Jorge Seif, o presidente pescou em alto mar, mergulhou (embora quem esteja com água até o pescoço seja o povo) e andou de Jet Ski. Existe, e sempre existiu, quem teime em comprar algodão por veludo — o que se quer dizer é o seguinte: ouviram-se, no cenário paradisíaco, aplausos de apoiadores. Rolou fotos, rolou selfies, rolou beijos, rolou abraços de admiradores — e rolou vírus porque rolou aglomeração, mas não rolou máscara. O mandatário também valeu-se do passeio para reunir amigos, a exemplo do deputado Hélio Gomes, apelidado de “Hélio negão”. Com ele, Bolsonaro brincou de fazer carinhos, fato que alguém do grupo (trata-se de gente dotada de uma criatividade incrível) chamou de “beijo hétero” — se o leitor não riu, nada grave, não há mesmo a menor graça. Bolsonaro carregou consigo para a praia a filha, Laura, e o filho Eduardo. Sob atentos olhares da esposa, Heloísa, e da filha, Geórgia, Eduardo surfou e surfou e surfou. “Bolsonaro e seu entorno não são apenas irresponsáveis”, avalia Francisco Fonseca, professor do Centro de Estudos de Administração Pública e Governo da FGV. “Eles também cometem crime ao desrespeitar as recomendações sanitárias. Tal atitude é a prática da chamada necropolítica, com uma gestão voltada à morte”.
O coordenador de Ciência Política da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Humberto Dantas, diz que “a estratégia do presidente visa a movimentar sua base mais fiel em momento de queda de popularidade”. Na terçona de carnaval, um lúcido homem publicou no Facebook: “(…) presidente, o senhor poderia ter ido dar esse passeio lá em Manaus para ver de perto a dor das pessoas infectadas (…). Enquanto o senhor se diverte, a economia castiga os menos favorecidos. É só uma dica: procure ir aos supermercados e veja a inflação”. Gente, o emocionalmente instável Bolsonaro virou um tubarão, daqueles que devoram e palitam os dentes com ossos das vítimas. Não é que o homem do Planalto ficou uma arara! (o leitor pode optar entre tubarão ou arara). E respondeu: “Vá reclamar de quem te obrigou a ficar em casa”. Resposta educadíssima, digna de quem teve bom berço e boa educação. Mas também pudera: por que há pessoas que acham que o sol nasceu para todos, se o capitão acha que o sol nasceu somente para ele?


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