A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro vai denunciar a Prefeitura por praticar uma suposta política de “higienização” na cidade. Segundo o órgão, pessoas em situação de rua vêm sendo expulsas de forma truculenta dos locais públicos em que costumam ficar. O objetivo seria escondê-la dos turistas durante a Olimpíada. A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) nega responsabilidade em eventuais arbitrariedades.

Para apurar a situação, o Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria criou o projeto Ronda DH, em parceria com a Defensoria Pública da União, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil e outras instituições. A ronda circula pelas ruas e coleta depoimentos por meio de questionários, que contêm perguntas objetivas sobre abusos e abrigo compulsório.

Os cerca de 50 questionários reunidos registram depoimentos de pessoas que dizer ter sido retiradas à força, tido seus pertences recolhidos e sido tratadas, muitas vezes, de forma agressiva. Segundo os dados da Defensoria, a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) é responsável por 49% das violações cometidas contra a população de rua (24% por agentes da Operação Choque de Ordem), seguida pela Guarda Municipal (17%) e Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS (14%).

“Me pegaram no Campo de Santana, me levaram para o Aterro do Flamengo, pediram para eu abaixar as calças e tacaram spray de pimenta. Logo depois me liberaram”, registra um dos depoimentos coletados. Outro entrevistado foi vítima de truculência na mesma área: “Estava no Aterro do Flamengo com uma barraca acampando. A equipe do Aterro Presente pegou a barraca e a mochila e tacou fogo, falando que não poderia acampar.”

A defensora Carla Beatriz Nunes Maia, do Nudedh e do Ronda DH, diz que as denúncias de violação aumentaram no mínimo 60% desde o início do ano. Uma ronda recente feita por locais no entorno do centro em que a população de rua costuma ficar, como Arcos da Lapa, Carioca e Passeio Público, não encontrou ninguém.

“Sabemos que esse sumiço se deve à política de ‘higienização’ do poder público, em função do turismo. Temos muitas provas, inclusive de agressões físicas”, disse a defensora.

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Na tarde de quarta-feira, 10, Carla Beatriz recebia a denúncia de uma moradora de rua que acabara de ter todos os seus pertences levados na Praça Paris. “Veio a van do abrigo, polícia, Guarda Municipal e o caminhão da Comlurb. Me chamaram de preta e pobre, falaram pra eu levantar, deixar meu cobertor e ir embora”, contou Erica Augusto, de 36 anos, que mora há dez nas ruas. “Levaram tudo meu só por causa da Olimpíada, essa bagunça. Falaram que eu não posso ficar sentada onde passa o VLT. Estão levando meus amigos à força, tá morrendo morador de rua envenenado.”

A SMDS afirma que não recebeu nenhum pedido oficial de reunião pela Defensoria, bem como qualquer denúncia sobre truculência no acolhimento de moradores em situação de rua. Em nota, esclareceu, ainda, que no dia 12 de abril publicou a Resolução 64, regulamentando o protocolo de abordagem a pessoas em situação de rua, documento que foi elaborado em parceria com a Defensoria Pública do Estado, Ministério Público Estadual, Câmara de Vereadores e Sociedade Civil.

“A SMDS mantém diálogo permanente com os órgãos de garantia de direitos, em especial com a Defensoria Pública (…), e reafirma sua posição de que não há e nem haverá qualquer tipo de violação de direitos de pessoas em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro”, diz a nota.

A Secretaria alegou, também, que o trabalho de abordagem social aos moradores de rua é feito diariamente, independentemente da Olimpíada, e que eles são convidados, mas nunca obrigados, a irem para os abrigos. De acordo com a assessoria, o que acontece é que, no período de grandes eventos, há um fluxo muito maior de gente e as pessoas em situação de rua, apesar de estarem no mesmo lugar, fogem à atenção de quem está em volta.

Já a Seop respondeu que atua no apoio às ações da SMDS no acolhimento de pessoas em situação de rua quando são encaminhadas para abrigos, além de ações para desobstrução das vias, quando são montadas estruturas que atrapalhem a circulação. “Em ambos os casos, os agentes são orientados a agir de forma respeitosa com os cidadãos, e não aprova qualquer tipo de excesso.”

Refúgio

Segundo a SMDS, 5.580 pessoas vivem em situação de rua no Rio de Janeiro, mas o número é de 2013. O centro é a região que mais concentra estas pessoas, com 33,8%. Carla Beatriz diz, no entanto, que quem trabalha na área sabe que esse total é maior: seriam cerca de 10 mil.

A marquise do prédio da Defensoria Pública do Estado, na Avenida Marechal Câmara, no centro, é, hoje, o único lugar em que a população de rua pode passar a noite em segurança. Existe um acordo informal entre essas pessoas e o órgão, que autoriza que elas ocupem a calçada a partir das 18h. Às 6h, devem se retirar. Voluntários levam jantar e café da manhã. Quando policiais ou guardas os abordam, um defensor vai até o local para impedir que sejam expulsos.

Cerca de 70 pessoas passam a noite ali diariamente. Há trabalhadores informais que dormem de segunda a sexta porque moram longe e não têm dinheiro para a passagem; pessoas que vieram de outros Estados, foram roubadas e não conseguem voltar; e outras que estão envolvidas com drogas ou álcool. Para passar o tempo, eles jogam cartas e dominó, apostando valores que vão de 10 a 50 centavos.

Há um ano e meio, o borracheiro desempregado Marcelino Saliano de Oliveira, de 56 anos, dorme todas as noites sob a marquise da Defensoria. Chorando, ele conta que morava em uma comunidade comandada por milicianos em Campo Grande e, ao dever três meses da “taxa” que era obrigado a pagar, foi expulso de sua casa com a filha, que estava grávida de oito meses. “Mataram minha esposa e meus dois filhos gêmeos. A vida dos três custou 150 reais.”

Adelmo Santos da Rocha, de 33 anos, dorme ali desde 2013. Ele e a namorada, Carine, de 25, são usuários de maconha e cocaína. Tímida, Carine diz que brigou com o pai por causa do vício e saiu de casa, em Nova Iguaçu. Para Rocha, a rua às vezes é a melhor opção: “Eu tenho problemas com drogas, qual a vantagem para mim ir para um abrigo que tem boca de fumo dentro?”.



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