As mais recentes decisões do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), têm gerado intenso debate jurídico e político. O magistrado é acusado pela oposição de abuso de poder pela imposição de medidas cautelares e, posteriormente, pelo decreto de prisão preventiva contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Bolsonaro foi alvo de operação da Polícia Federal no dia 18 de julho, quando foram impostas medidas cautelares, como utilização de tornozeleira eletrônica, recolhimento domiciliar noturno das 19h às 6h e a proibição de acesso às redes sociais, mesmo por meio de terceiros.
Três dias depois, o ex-presidente fez uma visita à Câmara dos Deputados, discursou e mostrou a tornozeleira eletrônica, imagem que foi amplamente divulgada nas redes sociais. Moraes enxergou no ato o descumprimento de uma das medidas restritivas e solicitou esclarecimento por parte da defesa de Bolsonaro. Após a resposta da defesa, o capitão da reserva foi advertido.
No domingo, 3, bolsonaristas organizara atos em apoio ao ex-presidente. Durante manifestação em Copacabana, no Rio de Janeiro, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) fez uma chamada de vídeo com o pai para transmitir uma mensagem aos apoiadores. “Boa tarde, Copacabana. Boa tarde, meu Brasil. Um abraço a todos. É pela nossa liberdade. Estamos juntos”, disse o ex-chefe do Executivo.
Bolsonaro também realizou uma chamada de vídeo com o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), que estava presenta no ato da Avenida Paulista, São Paulo.
Os dois atos, somados à divulgação de um vídeo por parte de Flávio Bolsonaro que mostra o ex-presidente com tornozeleira conversando com o filho, foram usados para embasar a decisão de Moraes que decretou a prisão domiciliar.
As mais recentes decisões levantaram críticas da oposição e de alguns especialistas sobre possíveis excessos em deliberações do magistrado. A IstoÉ conversou com André Marsiglia, conselheiro julgador no Conar, e Carlos Eduardo Japiassú, professor titular de Direito Penal da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), que analisar os pareceres do ministro.
IstoÉ: As mais recentes decisões de Moraes contra o ex-presidente Jair Bolsonaro configuram uma extrapolação de poder do Supremo Tribunal Federal? Por quê?
André: Extrapolam porque, embora o ministro possa impor medidas cautelares a um investigado, isso tem de obedecer à Constituição. A primeira decisão do ministro Moraes dava a entender que o Bolsonaro estaria impedido de se expressar, de dar entrevistas, e a Constituição garante a liberdade de expressão, que deve ser plena. A própria jurisprudência prevê que mesmo pessoas presas podem se manifestar. E o Bolsonaro sequer preso estava. Depois o Moraes se corrige e diz que ele pode se manifestar, mas que terceiros não podem divulgar a manifestação dele.
Isso é a mesma coisa que impedir a pessoa de se manifestar. Se alguém não pode divulgar o que eu vou dizer, claro que indiretamente eu estou proibido de falar. E estou sendo punido por atos de terceiros, que também a nossa Constituição impede que assim seja. O inciso 56 do artigo 5º prevê que a ação de terceiros não possa gerar punição a alguém.
Isso gera uma insegurança jurídica insuportável e injusta. O Moraes pode impor cautelares, mas não cautelares inconstitucionais, e foi o que ele fez na primeira decisão e também agora no entendimento de que atos de terceiros foram um descumprimento da cautelar.
Carlos EduardoJapiassú: O ministro Alexandre Moraes inova nas decisões. Ele estabeleceu a prisão domiciliar, e, caso haja descumprimento, haverá prisão preventiva. O problema é que prisão domiciliar não é medida substitutiva da prisão.
A prisão domiciliar é uma modalidade de prisão e é imposta de maneira excepcional. No caso do Bolsonaro, seria, por exemplo, em caso de problema de saúde.
Outra questão é que ele decidir de ofício, o que gera um probema institucional, porque ele tá avançando nas atribuições do Ministério Público.
IstoÉ: Moraes justificou medidas contra Bolsonaro com base em supostas articulações internacionais, lideradas por Eduardo Bolsonaro, para pressionar o STF. O senhor considera que essas ações de Bolsonaro ou de seu filho justificam as restrições impostas, ou elas representam uma interpretação expansiva do papel do STF?
André: Não considero. Primeiro, a prisão domiciliar foi determinada para evitar coação e obstrução por esses atos. Veja, o processo do golpe em relação ao Bolsonaro praticamente acabou, só falta a sentença. Então não há nada a ser obstruído e nem nada a ser coagido.
Então, se o processo já está no fim, se não há mais investigação, se não há mais interrogatório, se não há mais nada, só falta a
sentença, qual será a coação? Qual será a obstrução? É totalmente injustificável que essas supostas articulações resultem nessa medida. E mais, o que a publicação de um parlamentar ou do filho dele pode ter a ver com articulações internacionais? Porque foram esses os objetos do tal descumprimento. Não vejo relação nem com aquilo que ele delegou que era um descumprimento, não vejo relação disso com a suposta articulação internacional, nem vejo relação da suposta articulação internacional com o processo que já está no fim e que não tem mais como ser prejudicado, obstruído ou qualquer coisa que seja.
Carlos Eduardo: Para isso se justificar, ele precisa demonstrar a relação de causa e efeito. Os atos do Bolsonaro, desde a última medida até essa, que contribuem para o STF, são um fato novo. Ou seja, ele mesmo, com o equipamento eletrônico e a limitação para sair de casa, seguiu articulando com o filho.
Eduardo seguiu atuando nos Estados Unidos. Então, nesse caso, tem que responsabilizar o filho. O Bolsonaro seguiu conspirando para isso? Eu não encontrei, não vejo demonstração concreta desse fato. Está punindo o Bolsonaro por algo que o filho dele fez. Ainda que em benefício do ex-presidente, tem que comprovar uma conduta pessoal do Bolsonaro para justificar a sanção.
IstoÉ: Especialistas apontam que a decisão de Moraes sobre as medidas restritivas é confusa e subjetiva. O senhor tem a mesma percepção, e considera que a proibição de Bolsonaro aparecer em vídeos ou entrevistas, mesmo nas redes de terceiros, pode ser vista como uma forma de censura?
André: A meu ver, a decisão sobre as medidas restritivas é confusa e subjetiva. A decisão sobre as medidas cautelares é subjetiva, e a subjetividade é a mãe da censura.
Uma decisão subjetiva ou imprecisa não é passível de cumprimento, ela é passível de uma melhor redação por parte do juiz. Inclusive, houve embargo de declaração por parte da defesa para que o juiz esclarecesse. No lugar de esclarecer, ele foi e deu essa nova decisão dizendo que houve descumprimento.
Então, não vejo nenhuma razoabilidade. Há muita crítica sobre o fato de Moraes atuar como relator e juiz em processos envolvendo Bolsonaro.
Carlos Eduardo: A decisão é confusa. Bolsonaro podia dar entrevista, podia discursar, mas nada podia ir para as redes sociais.
A gente precisa de leis claras, de uma jurisprudência clara e estável, porque ambas condicionam comportamentos. No princípio da legalidade, a gente é livre para fazer tudo aquilo que não é proibido. Então, as proibições têm que ser claras para a gente entender o que pode ou não fazer.
O segundo ponto é que, normalmente, as pessoas relacionam as redes sociais com liberdade de expressão e tratam a proibição das redes sociais como censura prévia. Eu acho que a liberdade de expressão é uma das facetas das redes sociais, pois elas são espaços de socialização.
Retirar perfil me parece muito grave porque isso é o que é análogo à privação da liberdade. Em meio físico é a prisão, a privação da liberdade em meio virtual é retirar perfil. Isso me parece muito grave
IstoÉ: Muitos utilizam como defesa que as decisões de Moraes são referendadas pela maioria dos outros ministros. O senhor acha que pode haver um certo vício por parte dos outros magistrados?
André: Há um certo vício por parte dos ministros, por isso existem críticas à politização das decisões do ministro Moraes, da Corte como um todo, sobretudo, da primeira turma, que é quem julga o Bolsonaro. Tanto que na primeira
turma, dos cinco juízes que julgam o caso do processo do golpe, três a defesa alegou suspeição.
O Moraes, por ser vítima. O Dino, por ter sido ministro da justiça do Lula e ter processos contra o Bolsonaro, processos por crimes contra a honra. E o Zanin, que é um ministro que, como advogado do Lula na época, atuou contra a candidatura do Bolsonaro na esfera eleitoral.
Se nós pensarmos que três dos cinco ministros estão sob suspeição, sem dúvida alguma, a confirmação da turma não é relevante, porque a maior parte dela está sendo acusada, digamos assim, de ‘politizar o caso’ e de serem suspeitos para o julgamento. As decisões de Moraes estabelecem precedentes que podem ser utilizados contra políticos. É perigoso, e não só contra políticos, mas contra cidadãos de forma geral.
Se considerarmos que, nesse caso do Bolsonaro, estamos restringindo a liberdade de expressão e até mesmo a liberdade de imprensa — porque alguns, como o Felipe Martins, por exemplo, ou o próprio Bolsonaro, em algum momento, foram impedidos de dar entrevistas —, então você restringe também a liberdade de imprensa e o direito da sociedade de receber informações. Há alguns dias, tivemos até mesmo o direito de reunião limitado na Praça dos Três Poderes.
Carlos Eduardo: O fato dos outros ministros manterem as decisões do Moraes tornam elas mais legítimas, mas nada impede que as pessoas errem juntas. Me parece que o Supremo tem inovado muito em matéria penal.
Claro que estamos lidando com um mundo diferente com as redes sociais. Mesmo assim, há excessos. Isso não traz segurança. E se não traz segurança, a gente tem um problema democrático.
IstoÉ: As decisões recentes de Moraes podem abrir um precedente que, futuramente, pode ser utilizada contra políticos que hoje defendem as atitudes do ministro? E também pode ser perigoso para o Estado de Direito no Brasil?
André: Tudo isso gera um precedente e, na mais alta Corte, é um precedente de cima para baixo para todo o Brasil, precedentes de limitação de liberdades individuais.
Isso é muito ruim, não apenas para os políticos, que dependem da palavra, mas para todos nós — jornalistas, advogados, enfim, todas as pessoas que, de alguma forma, exercem suas liberdades individuais e as veem limitadas por esse processo, especificamente, que envolve o caso em questão.
Carlos Eduardo: Decisões judiciais geram precedentes contra políticos, ex-presidentes, ou até a um ladrão de galinha. O problema dessas medidas extraordinárias é a sua normalização, que pode atingir qualquer pessoa.
Só há uma maneira de proteger o Estado Democrático de Direito, que é por meio do Estado Democrático de Direito. Então, a gente precisa de legalidade e de serenidade. Não me parece que é isso que esteja acontecendo.