Decisões recentes da Justiça têm embaralhado o entendimento sobre a inclusão das Sociedades Anônimas do Futebol para responder a dívidas cíveis e trabalhistas dos clubes, contraídas antes da mudança para empresa. Entendimentos distintos de juízes configuram um clima de insegurança jurídica. O problema não é novo. Ele foi apontado desde a aprovação do texto final da Lei da SAF.

Enquanto o tema central dos debates de torcedores e programas esportivos envolvendo os clubes-empresa se debruça sobre os investimentos em jogadores e a possível profissionalização das agremiações, a dúvida quanto às dívidas trabalhistas persiste e promete continuar afetando o cotidiano dos clubes que viraram SAF.

A Lei da SAF criou um mecanismo que facilita a quitação dos passivos. O texto diz que 20% da receita do clube-empresa e 50% dos lucros e dividendos, caso tenha, devem ser destinados ao clube (associação) para pagar as dívidas. O Regime Centralizado de Execuções (RCE) se mostrou um dos atrativos aos clubes que quiseram virar SAF. Ele possibilita o fim de bloqueios e execuções, tão comuns em clubes brasileiros endividados, dando um respiro no caixa. O RCE reúne as dívidas e forma uma fila de credores. Com isso, a SAF precisa pagar 60% do seu passivo cível e trabalhista no prazo previsto de seis anos e, caso cumpra a meta, há uma prorrogação de mais quatro anos para o pagamento restante.

Muitos advogados das SAFs adotam a linha de argumentação de que elas são uma personalidade jurídica diferente e, por isso, não deveriam responder nesses casos e que há previsão de pagamento de dívidas, mas dentro do Regime Centralizado de Execuções. Do outro lado, advogados de ex-funcionários argumentam que há uma sucessão de empregador (clube para empresa), o que manteria a SAF respondendo às ações, e de que o clube ainda mantém porcentagem da SAF, ou seja, faz parte do mesmo grupo econômico.

O advogado Higor Maffei Bellini, que defende ex-funcionários de clubes em ações trabalhistas na Justiça para incluir as SAFs como responsáveis nestes processos, diz que as obrigações trabalhistas continuam com a CLT e a Lei Pelé, enquanto a Lei da SAF só pode versar sobre a mudança de clube para empresa.

“É um momento nebuloso. A lei da SAF não pode passar por cima da CLT e da Lei Pelé. Ela reconhece que a dívida pode ser paga com os lucros que vêm da SAF, mas ela se esquece que o clube segue como sócio da SAF”, avalia Bellini.

“A Lei da SAF queria criar mecanismo apartado da CLT e do Código Civil, mas é impossível fazer isso. Deixaram de considerar que o clube (associação) fica como sócio. Por exemplo, Cruzeiro e Botafogo têm 10% cada das ações da SAF. Entendo que é um grupo econômico porque ainda tem uma participação acionária. E a CLT é clara, a sucessão empresarial não afeta direitos trabalhistas. A insegurança veio quando a Lei da SAF ignorou esses pontos”.

Advogado responsável pela SAF do Botafogo, André Chame, participou de audiências públicas da formulação da lei e descarta a visão de que há insegurança jurídica sobre o tema. “O que temos bem claro é que existe uma responsabilidade solidária da dívida, mas há mecanismos para que a SAF não seja afetada por cobranças. No caso do Regime de Centralização de Execuções, que muitos clubes optaram, a SAF não pode ser incomodada pelas dívidas desde que siga o que está previsto em lei. A SAF tem a responsabilidade, mas não pode ser cobrada se estiver cumprindo com suas obrigações”.

O artigo 23 da Lei da SAF diz que “Enquanto o clube ou pessoa jurídica original cumprir os pagamentos previstos nesta Seção, é vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas”.

“Chegaram esses 10 anos e ainda falta um saldo a pagar? Aí existe essa responsabilidade. Isso vai depender muito de cada clube, ver quanto cada SAF vai faturar e o tamanho da dívida de cada uma. A conta precisa fechar”, diz Chame. “Cada lei nova há um período de amadurecimento nos tribunais, vão se consolidando entendimentos. Com bloqueio de caixa o tempo todo, não daria para pagar as dívidas”, defende.

Já Bellini entende que as brigas na Justiça devem se arrastar. “Isso só vai ter pacificação quando daqui a uns anos o Tribunal Superior do Trabalho começar a julgar essas ações. Não adianta o tribunal de Minas falar uma coisa e o do Rio falar outra. O TST é quem vai uniformizar o entendimento da Justiça do Trabalho e isso demora”.

No fim de julho, o Cruzeiro desistiu de aderir ao Regime Centralizado de Execuções após dar entrada no processo de recuperação judicial. A lista de credores do clube mineiro, comandado por Ronaldo Fenômeno, tem quase 800 nomes, além de empresas, e inclui o ex-atacante Fred e o goleiro e ídolo Fábio. Somados, o total da dívida supera a marca de R$ 500 milhões.