“Pela primeira vez não vamos ter um candidato de direita na campanha”, celebrava o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em um evento no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um ano antes da eleição que consagraria Dilma Rousseff como sua sucessora. “Não é fantástico isso? Vocês querem conquista melhor do que numa campanha neste País a gente não ter nenhum candidato de direita?” Ficava implícito que o candidato tucano em 2010, José Serra, não era de direita.

Lula nem sempre seria tão generoso com o PSDB: em um comício pela reeleição de Dilma na campanha de 2014, chegou a comparar os tucanos aos nazistas e a Herodes. A retórica petista mais costumeira tentava caracterizar o PSDB como o completo oposto dos governos de Lula e Dilma – era o partido da elite que não gostava de ver pobre em aeroportos e faculdades.

Lula mostrou-se mais razoável nas declarações que deu no Ipea em 2009: de fato, PT e PSDB têm óbvias diferenças, mas não são antípodas ideológicos. A ideia de que a ausência da direita em um pleito presidencial seja algo desejável, de outro lado, embute um nítido componente autoritário: Lula afirmava, em essência, que a democracia mais saudável é aquela em que só um campo político está representado. E agora a tal direita que esteve ausente nas eleições de 2010 chegou ao poder na sua versão mais agressiva: Jair Bolsonaro. Essa virada de um extremo ao outro define a trajetória política brasileira na década que se encerra.

Já se dizia que o País saiu dividido do pleito de 2014, quando Dilma reelegeu-se no segundo turno com uma estreita vantagem de cerca de 3,5 milhões de votos em relação a Aécio Neves. Mas a polarização só se tornou realmente abissal com a emergência recente de Bolsonaro.

Se durante o governo de Michel Temer o PT conseguira tornar corrente nos círculos de esquerda a ideia de que o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 fora um golpe, a revisão de conceitos tornou-se ainda mais selvagem sob Bolsonaro: o País de repente começou a discutir se o golpe de 1964 foi mesmo golpe, e se a ditadura que então se instaurou foi mesmo ditadura. Bolsonaro constitui uma ruptura drástica de consensos estabelecidos no debate público brasileiro. Sua eleição consagrou o fim de uma certa hegemonia cultural da esquerda, muito bem definida pelo crítico marxista Roberto Schwarz em um ensaio do final dos anos 1960.

A erosão dessa hegemonia começou justamente quando a maior força da esquerda, o PT, ocupou o poder: o partido “perde o charme” de força opositora, na definição do cientista político Fernando Schüler, do Insper. A debacle econômica do governo Dilma certamente contribuiu para o declínio da legenda, mas Schüler prefere enfatizar um processo mais estritamente político: “Lula criou uma narrativa excludente, do ‘nós contra eles’, do ‘nunca antes neste País’. E uma narrativa assim cria o seu oposto”, avalia. “Em uma sociedade aberta e complexa como o Brasil, se você tem uma carga ideológica pesada de um lado, você também vai ter alguma resposta do outro lado.”

A expressiva votação de Aécio em 2014 parecia qualificar os tucanos como porta-vozes das insatisfações com o projeto petista, mas a divulgação, em 2017, do comprometedor diálogo em que o político mineiro pede um empréstimo de R$ 2 milhões ao empresário Joesley Batista, da JBS, sepultou de vez suas ambições presidenciais. E o PSDB, pondera Schüler, sempre foi um “partido parlamentar”, sem quadros ou militância que pudessem encampar o antipetismo que fermentava nas ruas desde 2013.

Onda

O ano de 2013 foi fundamental na virada conservadora no Brasil. As manifestações que tomaram as ruas em junho começaram com movimentos minoritários da esquerda que protestavam contra o aumento da tarifa de transporte público em São Paulo, mas as massas que saíram às ruas naquele mês expressaram anseios mais variados. A bandeira do combate à corrupção também estava lá, antecipando uma corrente essencial do compósito de forças que viria a sustentar o governo Bolsonaro: o “lavajatismo”.

O jornalista Eugênio Bucci, professor da USP e autor de A Forma Bruta dos Protestos, observa que “explosões sociais” como as que se viram naquele ano comportam inquietações múltiplas. “Havia uma insatisfação com a corrupção, com a qualidade de serviços públicos, com a ausência de representação nas instituições políticas, com o distanciamento entre eleitores e seus representantes”, diz. E, sim, a direita que adiante constituiria a base mais fiel a Bolsonaro tomou impulso ali. Bucci, no entanto, rejeita a visão conspiracionista de que as chamadas “jornadas de junho” já fariam parte de uma estratégia de longo prazo da direita.

Acesso

Fernando Schüler observa que a comunicação rápida por Facebook, Twitter e WhatsApp “diminuiu o custo” da participação efetiva na política, trazendo mais pluralidade ideológica à democracia brasileira. Graças à destreza na elaboração de posts e memes, os arrivistas da direita podiam competir com as pesadas e burocráticas instituições de esquerda – centrais sindicais, por exemplo – na guerra de propaganda.

“As redes sociais baixaram a barreira de entrada na política”, concorda Pablo Ortellado, da USP, um estudioso dos impactos da internet na política. “Graças a elas, novos atores políticos conseguem se organizar, se comunicar e chamar manifestações de forma bem mais fácil.” A contrapartida dessa expansão é o reforço da tão propalada polarização política.

Figura do baixo clero do Congresso que ganhou proeminência por expressar sem pejo nem sutileza as opiniões mais extremadas, Bolsonaro conseguiu se alçar a representante do antipetismo e do combate à corrupção. Era, define Ortellado, o candidato “mais plausivelmente antissistêmico” em um momento no qual se fixara a noção de que os partidos tradicionais eram todos “farinha do mesmo saco”.

Eugênio Bucci acredita que, na esteira da Lava Jato, tornou-se comum um “discurso de criminalização da política” que favoreceu a ascensão de Bolsonaro. Mas PT, PMDB (hoje MDB) e PSDB tampouco souberam corrigir erros e se distanciar de escândalos bilionários como a corrupção na Petrobrás. Com Bolsonaro no poder, a Lava Jato chegou ao Ministério da Justiça, o liberalismo da Universidade de Chicago tomou conta da economia e o reacionarismo de Olavo de Carvalho configurou a retórica do Planalto. “Hoje temos um presidente que valoriza a família, respeita a vontade do seu povo, honra seus militares e acredita em Deus”, resumiu Bolsonaro na mensagem natalina divulgada pela TV.

Fiel a seu estilo, o presidente tem defendido cada um desses valores de forma confrontacional, sempre se batendo contra os governos “socialistas” que o antecederam. Sua postura hostil à imprensa, seu comportamento errático e imperial, sua exaltação de ditaduras de direita parecem representar um desafio constante à cultura democrática brasileira. Mas o governo Lula tampouco foi modelar: tentou expulsar do Brasil um jornalista estrangeiro – o americano Larry Rohter, então correspondente do jornal The New York Times – e mostrou-se sempre condescendente com ditaduras de esquerda (em 2016, quando da morte de Fidel Castro, Lula afirmou que o cubano foi “o maior homem do século 20”).

Polos

Em política, é claro, qualquer simetria entre lados opostos será sempre imperfeita, quando não enganosa, e o quanto cada lado atenta de fato contra a democracia é matéria aberta para debates renhidos. Eugênio Bucci diz que o governo Lula não é comparável ao governo Bolsonaro, que representaria, sim, uma ameaça real à democracia – ele cita a permanente ridicularização da imprensa e a insistência em medidas como o excludente de ilicitude para policiais (que a Câmara dos Deputados retirou do pacote anticrime) como evidências da vontade autoritária do presidente.

Fernando Schüler prefere ver a eleição de Bolsonaro como uma prova da pluralidade e da vitalidade da democracia brasileira, que, afinal, tem um governo de direita depois de um longo ciclo esquerdista.

Resta o fato indisputável de que a polarização tornou-se a dinâmica da política hoje. Bolsonarismo e lulismo alimentam-se mutuamente – Pablo Ortellado observa que, em resposta ao antipetismo radical hoje vigente, o PT tornou-se ainda mais centralizado em torno de Lula. “Antigamente, o PT ainda fazia de conta que tinha debates internos e prévias. Hoje em dia, eles (dirigentes do partido) nem disfarçam: dizem que estão à espera das decisões de Lula.” Pode-se supor que o confronto dessas forças extremadas vai dominar a política por muito tempo. Mas, claro, no início da década, ninguém imaginava que Jair Bolsonaro seria presidente. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.